Não!
Quem está aí?
Sua consciência. Estou péssima. Veja, estão levando Conina para o harém.
Antes ela do que eu, pensou Rincewind, mas sem muita convicção.
Faça alguma coisa!
Há guardas demais! Vão me matar!
Tudo bem que o matem, não é o fim do mundo. Para mim, é, pensou Rincewind, emburrado. Mas imagine como irá se sentir na próxima vida…
— Olhe aqui, cale a boca. Já estou cheio de mim.
Abrim aproximou-se de Rincewind e fitou-o, intrigado.
— Com quem está falando? — perguntou.
— Estou lhe avisando — ameaçou Rincewind, por entre os dentes cerrados. — Tenho uma arca mágica, com pernas, que é implacável com quem a ataca. Uma palavra minha e…
— Estou impressionado — ironizou Abrim. — Ela é invisível?
Rincewind arriscou olhar para trás.
— Estava comigo quando cheguei — disse, e inclinou-se para o lado.
Seria um erro dizer que a Bagagem não estava em lugar nenhum. Ela estava em algum lugar, mas em nenhum lugar perto de Rincewind.
Vagarosamente, Abrim contornou a mesa onde ficava o chapéu, enrolando o bigode.
— Mais uma vez eu lhe pergunto — insistiu. — Este é um artefato de poder. O que ele faz?
— Por que não pergunta ao próprio chapéu? — sugeriu Rincewind.
— Ele se nega a responder.
— Por que você quer saber?
Abrim riu. Não era um barulho agradável. Parecia que haviam lhe explicado exaustivamente o que era rir, mas ele jamais ouvira alguém rir de fato.
— Você é mago — repetiu. — A magia dos magos é só jogo de poder. Eu mesmo já me interessei por ela. Tenho o dom, entende?
O vizir se aprumou.
— Ah, tenho sim. Mas não me aceitaram na Universidade. Disseram que eu era mentalmente instável, dá para acreditar?
— Não — respondeu Rincewind, com sinceridade.
A maioria dos magos da Invisível sempre lhe pareceu ter um parafuso a menos. Abrim parecia boa matéria-prima para mago. O vizir abriu um sorriso à guisa de incentivo.
Rincewind olhou de viés para o chapéu. A peça não disse nada. Ele voltou a encarar o vizir. Se a risada havia sido estranha, o sorriso fazia com que parecesse normal feito canto de passarinho. Era como se o vizir o tivesse aprendido em gráficos.
— Nem cavalos selvagens me fariam ajudá-lo — provocou Rincewind.
— Ah — exclamou o vizir. — Um desafio.
Ele chamou o guarda mais próximo.
— Temos cavalos selvagens no estábulo?
— Alguns bem agressivos, senhor.
— Enfureça quatro deles e leve-os ao jardim anti-horário. Ah, e leve também correntes.
— Agora mesmo, senhor.
— Hum. Olhe — disse Rincewind.
— Sim? — indagou Abrim.
— Bom, se é assim…
— Quer dizer alguma coisa?
— É o chapéu de arqui-reitor — revelou Rincewind. — O símbolo da magia dos magos.
— Poderoso?
Rincewind estremeceu.
— Muito — assentiu.
— Por que se chama chapéu de arqui-reitor?
— Arqui-reitor é o mago sênior mais importante, entende? O líder. Mas, olhe…
Abrim pegou o chapéu e revirou-o nas mãos.
— Poderíamos dizer que é o símbolo do cargo?
— Com certeza. Mas, olhe, se for botá-lo na cabeça, é melhor eu avisar…
Cale a boca.
Abrim saltou para trás, deixando o chapéu cair no chão. O mago não sabe de nada. Livre-se dele. Precisamos negociar. O vizir mirou as octarinas reluzentes em torno do chapéu.
— Eu, negociar? Com um acessório de vestuário?
Tenho muito a oferecer, na cabeça certa.
Rincewind estava horrorizado. Já foi mencionado que ele tinha o instinto de perigo, em geral encontrado em pequenos roedores. Naquele momento, esse instinto lhe batia na lateral do crânio, impelindo-o a fugir e esconder-se em algum lugar.
— Não lhe dê ouvidos! — gritou.
Ponha-me, pediu o chapéu dissimuladamente, numa voz envelhecida e abafada.
Caso realmente houvesse uma escola de vizir, Abrim seria o primeiro da turma.
— Vamos conversar antes — decidiu.
Encarou os guardas e apontou para Rincewind.
— Joguem-no no tanque de aranhas — ordenou.
— Não, aranha não, qualquer outra coisa! — gemeu o mago.
O capitão da guarda deu um passo adiante e bateu continência.
— Acabaram as aranhas, senhor — lamentou.
— Ah — o vizir pareceu momentaneamente desconcertado. — Nesse caso, tranquem-no na jaula do tigre.
O guarda hesitou, tentando ignorar a súbita crise de choro ao seu lado.
— O tigre está doente, senhor. A noite toda, para um lado e para o outro.
— Então joguem esse covarde no poço do fogo eterno!
Dois guardas entreolharam-se por cima da cabeça de Rincewind, que havia caído de joelhos.
— Ah. Vamos precisar de tempo, senhor…
— … para acendê-lo novamente.
O vizir esmurrou a mesa com força. O capitão da guarda iluminou-se.
— Tem a cova das serpentes, senhor — sugeriu.
Os outros guardas assentiram. Sempre havia a cova das serpentes.
Quatro cabeças voltaram-se para Rincewind, que se levantou e limpou a poeira dos joelhos.
— O que acha de cobras? — perguntou um dos guardas.
— Cobras? Não gosto muito…
— Para a cova das serpentes — decidiu Abrim.
— Para a cova das serpentes — concordaram os guardas.
— Quer dizer, algumas cobras são legais… — arriscou Rincewind, enquanto dois guardas lhe agarravam os cotovelos.
Na verdade, só havia uma única serpente, bastante circunspecta, que permaneceu enrolada num canto da cova escura, observando Rincewind, desconfiada, talvez porque ele a lembrava um mangusto, mamífero que se alimenta de cobras.
— Oi — disse ela, afinal. — Você é um mago?
No que tange à fala de cobra, era um progresso considerável na cadeia geral de “esses”, mas Rincewind estava desanimado o bastante para não perder tempo pensando no assunto, e apenas respondeu:
— Está escrito no chapéu. Não sabe ler?
— Na verdade, em dezessete línguas. Aprendi por conta própria.
— Jura?
— Fiz cursos por correspondência. Mas tento não ler. Não cai bem.
— Imagino que não.
Sem dúvida, era a voz de cobra mais polida que Rincewind já ouvira.
— Igual ao tom de voz — acrescentou a serpente. — Eu não deveria estar falando com você agora. Pelo menos, não assim. Acho que poderia rosnar um pouco. Para dizer a verdade, eu deveria mesmo era estar tentando matá-lo.
— Tenho poderes extraordinários — alegou Rincewind. Não é mentira, pensou ele: a incapacidade quase absoluta de dominar qualquer tipo de magia é bastante extraordinária para um mago, e, de qualquer maneira, mentir para cobra não tem importância.
— Nossa. Imagino que você não vá ficar aqui por muito tempo.
— Hummm?
— Imagino que saia levitando a qualquer instante.
Rincewind estudou os muros de cinco metros de altura e alisou seus machucados.
— Talvez — disse, com cautela.
— Nesse caso, será que poderia me levar junto?
— Hã?
— Eu sei que é pedir muito, mas essa cova é um buraco só.
— Levar você? Mas você é uma cobra, essa cova é sua. A idéia é você ficar aqui e as pessoas virem até você. Sei como são essas coisas.
Uma sombra atrás da serpente se desdobrou.
— Isso não é coisa que se diga a ninguém — observou o vulto, e se adiantou para a luz.