— Deve ser alguma passagem secreta — acrescentou. — Vamos lá, use um pouco de magia. Está presa.
— Não quer ouvir o resto da piada? — insistiu Rincewind, a voz aflita.
Estava quente e seco ali embaixo, sem nenhum perigo imediato, descontada a serpente, que tentava passar despercebida. Tem gente que nunca está satisfeita.
— Acho que agora não — respondeu Nijel. — Eu preferiria um pouco de auxílio mágico.
— Não sou bom nisso — confessou Rincewind. — Nunca peguei o jeito, é mais do que apenas apontar o dedo para aí e dizer “Abracadabra”…
Ouviu-se o ruído de um raio de luz octarina atingindo uma laje pesada e detonando-a em mil pedrinhas voadoras, e não era de admirar.
Depois de um tempo, Nijel levantou-se devagar, limpando o colete.
— Isso mesmo — disse, com a voz de quem está determinado a não perder o autocontrole. — Muito bem. Agora, que tal deixarmos esfriar um pouco? E depois… depois podemos ir.
Ele pigarreou um pouco.
— Nnn — murmurou Rincewind.
O mago estava olhando fixamente para a ponta do dedo, mantendo o braço esticado de modo a sugerir que lamentava não ter braços mais compridos.
Nijel espiou o buraco enfumaçado.
— Parece dar numa sala — informou.
— Nnn.
— Você na frente — disse Nijel.
Ele deu um leve empurrão em Rincewind. O mago cambaleou para a frente, deu com a cabeça numa pedra, sem ao menos notar, e entrou no buraco.
Nijel bateu no muro e franziu a testa.
— Está sentindo? — perguntou. — A pedra não está tremendo?
— Nnn.
— Você está bem?
— Nnn.
O bárbaro colou o ouvido às pedras.
— Tem um barulho muito estranho — avisou. — Uma espécie de zumbido.
Um pouco de poeira caiu da argamassa acima de sua cabeça.
Então duas pedras bem mais pesadas se soltaram dos muros da cova e tombaram na areia.
Rincewind já havia partido, cambaleante, pelo túnel, soltando interjeições de susto e ignorando completamente as pedras que não o acertavam e, também, as que o atingiam em cheio.
Caso se encontrasse em condições de reparar, saberia o que estava acontecendo. O ar tinha uma textura oleosa e cheirava a lata queimada. Arco-íris cobriam todas as arestas. Uma formação mágica vinha se desenvolvendo em algum lugar próximo. Era grande e tentava se enterrar. Qualquer mago, mesmo inábil como Rincewind, sobressaía como um farol de cobre.
Nijel surgiu da poeirada quente e ressonante, e deu com ele parado em outra cova, cercado por uma coroa octarina.
Rincewind estava pavoroso. Até Creosoto teria lhe notado os olhos reluzentes e o cabelo esvoaçante. Ele parecia ter acabado de comer um punhado de glândulas pineais, acompanhadas de uma dose de adrenocromo. Estava tão alto que poderia ser usado como satélite.
Todos os fios de cabelo se erguiam da cabeça, soltando faíscas. Até a pele dava a impressão de querer se desprender dele. Os olhos pareciam girar na horizontal. Quando abriu a boca, centelhas de menta irromperam dos dentes. Por onde havia pisado, as pedras derretiam, criavam orelhas ou transformavam-se em negócios pequenos, escamosos e roxos, e fugiam.
— Ei — chamou Nijel. — Você está bem?
— Nnn — respondeu o mago, e a sílaba virou uma rosca no ar.
— Não parece — considerou Nijel, com o que, nas circunstâncias, poderíamos chamar de extraordinária perspicácia.
— Nnn.
— Por que não tenta nos tirar daqui? — acrescentou Nijel, e sensatamente se jogou no chão.
Como uma marionete, Rincewind assentiu e apontou o dedo para o teto, que derreteu como gelo sob a ação de um maçarico.
Ainda assim, o ruído prosseguia, enviando seus tons inquietantes, a dançar pelo palácio. E fato conhecido de todos à existência de freqüências que geram pânico e freqüências que provocam constrangedora incontinência, mas a rocha estremecida ressoava na freqüência que faz a realidade se derreter pelos cantos.
Nijel mirou o teto gotejante e provou-o com cuidado.
— Creme de limão — disse, e perguntou: — Sem chance de uma escada?
Mais chamas se lançaram dos dedos arruinados de Rincewind, fundindo-se numa escada rolante quase perfeita, à exceção de que provavelmente nenhuma outra escada rolante no mundo era forrada com pele de jacaré.
Nijel pegou o mago e saltou para lá. Por sorte, os dois haviam chegado ao topo antes de a magia desaparecer, muito de repente.
Brotando do centro do palácio, quebrando os telhados como um cogumelo a irromper do chão, havia uma torre branca mais alta do que qualquer outro prédio de Al Khali.
Imensas portas duplas haviam se aberto na base e, agora, dezenas de magos saíam delas como se fossem donos do lugar. Rincewind imaginou reconhecer alguns rostos, rostos que já vira murmurando vagamente em salas de audiência ou examinando o mundo no campus da Universidade. Não eram rostos feitos para o mal. Não tinham presas. Mas havia um denominador comum entre as fisionomias que deixaria apavorada qualquer pessoa mais observadora.
Nijel escondeu-se atrás de um muro. Pegou-se fitando os olhos preocupados de Rincewind.
— Aquilo é magia!
— Eu sei — confirmou Rincewind. — Não está certo!
Nijel olhou a torre reluzente.
— Mas…
— Está errado — insistiu Rincewind. — Não me pergunte por quê.
Meia dúzia de guardas do xerinfe surgiu de uma porta arqueada e correram em direção aos magos — a correria parecia ainda mais sinistra por causa do terrível silêncio geral. Por um instante, as espadas brilharam à luz do sol. Então, dois magos se viraram, estenderam as mãos e… Nijel desviou os olhos.
— Eca! — disse.
Algumas espadas recurvas tombaram no chão.
— Acho que devemos ir embora — sugeriu Rincewind.
— Mas você não viu no que transformaram os guardas?
— Em cadáveres — respondeu Rincewind. — Eu sei. Não quero pensar nisso.
Nijel se deu conta de que jamais conseguiria deixar de pensar naquilo, principalmente às três da manhã, em noites de vento. O problema de morrer por magia é que era muito mais criativo do que, digamos, a facadas. Havia uma infinidade de maneiras novas de morrer, e ele não conseguia tirar da cabeça as formas que tinha visto, só por um instante, antes que a onda de fogo octarina as houvesse engolido.
— Eu não sabia que os magos eram assim — disse ele, enquanto os dois disparavam por uma rua. — Achei que fossem mais tolos do que cruéis. Figuras divertidas.
— Então morra de rir daquilo — murmurou Rincewind.
— Mas mataram os guardas sem nem mesmo…
— Eu prefiro que você não fale. Também vi.
Nijel recuou. Apertou os olhos.
— Você é mago — observou, acusadoramente.
— Não daquele tipo — objetou Rincewind.
— E de que tipo?
— Do tipo que não mata.
— Foi a maneira de olharem para os guardas, como se aquilo não tivesse importância… — prosseguiu Nijel, sacudindo a cabeça.
— Foi a pior parte.
— É.
Rincewind soltou a vogal única sobre o fio de pensamento de Nijel como se fosse um tronco de árvore. O menino estremeceu, mas pelo menos se calou. Rincewind começou a sentir dó dele, o que não era comum: em geral, achava que precisava de toda a piedade para si próprio.
— Foi a primeira vez que viu alguém morrer? — perguntou.
— Foi.
— Há quanto tempo é herói bárbaro?
— Ha… Em que ano estamos?
Da esquina, Rincewind espiou a rua. As pessoas que estavam de pé se encontravam ocupadas demais, entrando em pânico, para se incomodarem com eles.