— Está escuro demais — reclamou o mais baixo dos magos.
— É meia-noite — rebateu Aversal. — E a única coisa perigosa aqui somos nós. Não é, rapazes?
Ouviu-se um coro de murmúrios vagos. Estavam todos admirados com Aversal, sobre quem corria o boato de que fazia exercícios para manter o pensamento positivo.
— E não temos medo de alguns livros velhos, temos, companheiros? — Ele encarou o mago baixote. — Você não tem, tem? — acrescentou, irritado.
— Eu? Ah. Não. Claro que não. Não passam de papel, como ele bem disse — apressou-se em responder o mago.
— Pois bem.
— São 90 mil — contestou outro.
— Sempre ouvi dizer que eram infinitos — observou ainda outro. — São as dimensões, ouvi falar que o que vemos não passa da ponta do… que quer que seja. Sabem, aquele negócio que fica quase todo debaixo d'água…
— Hipopótamo?
— Jacaré?
— Oceano?
— Calem a boca! — gritou Aversal.
Ele hesitou. A escuridão parecia absorver o som da voz. E enchia o ambiente como se fosse de plumas. Ele se aprumou um pouco.
— Muito bem — disse, e virou-se para a ameaçadora porta da biblioteca.
Levantou as mãos, fez uns gestos complicados nos quais os dedos, de algum modo que fazia os olhos se encherem de água, pareciam atravessar uns aos outros, e detonou a porta.
As ondas do silêncio retornaram, abafando o ruído da queda das lascas de madeira.
Não havia dúvida de que a porta estava despedaçada. Quatro dobradiças tristes oscilavam na lateral, e restos de bancos e estantes quebradas encontravam-se entre os escombros. Até Aversal se mostrou um pouco surpreso.
— Pronto — animou-se. — E fácil assim. Viram? Não aconteceu nada comigo. Certo?
As botas de ponta recurva arrastaram-se no chão. O breu, para além do vão da porta, se fazia delinear pelo indistinto brilho da irradiação taumatúrgica, uma vez que as partículas de possibilidade excediam a velocidade da realidade em campo mágico intenso.
— E agora — entusiasmou-se Aversal — quem quer ter a honra de botar fogo?
Dez segundos de silêncio mais tarde, ele disse:
— Nesse caso, eu mesmo boto. Sinceramente, é como se eu estivesse falando para as paredes.
Atravessou o vão da porta e correu até a área iluminada pela luz das estrelas, a entrar pela cúpula de vidro bem acima do centro da biblioteca (embora, evidentemente, sempre tenha havido muita discussão sobre a geografia exata do lugar: concentrações maciças de magia distorcem o tempo e o espaço, e é possível que a biblioteca nem tenha fim, que dirá centro).
Ele estendeu os braços.
— Pronto. Estão vendo? Não aconteceu absolutamente nada.
Agora entrem.
Os outros magos obedeceram, com muita relutância e tendência de agachar ao passar pelo arco violado.
— Muito bem — disse Aversal, com satisfação. — Todos trouxeram os fósforos, como instruídos? Fogo mágico não vai funcionar nesses livros, então quero que vocês…
— Alguma coisa se mexeu lá em cima — observou o mais baixo dos magos.
Aversal piscou.
— O quê?
— Alguma coisa se mexeu na cúpula — informou o mago, acrescentando, à guisa de explicação: — Eu vi.
Aversal mirou o breu do teto e decidiu empregar um pouco de autoridade:
— Absurdo — protestou, energicamente. Pegou um feixe de fósforos amarelos malcheirosos e continuou: — Agora, quero que todos vocês juntem…
— Eu vi mesmo — insistiu o mago baixote, amuado.
— Tudo bem, viu o quê?
— Bem, não sei exatamente…
— Você não sabe? — irritou-se Aversal.
— Eu vi alg…
— Você não sabe! — repetiu Aversal. — Não está vendo nada além de sombras, só quer minar minha autoridade, não é isso? — Aversal hesitou e, por um instante, os olhos se vidraram. — Estou calmo — disse ele. — Estou no comando. Não vou deixar…
— Era…
— Escute aqui, tampinha, cale a boca, está bem?
Um dos outros magos, que vinha olhando o teto para esconder seu constrangimento, tossiu.
— Hã… Aversal…
— E isso serve para você também!
Aversal empertigou-se e agitou os fósforos.
— Como eu estava falando — prosseguiu —, quero que acendam os fósforos e… acho que vou ter de mostrar a vocês como acender fósforo, para vantagem do tampinha aí, e… eu não estou lá fora. Minha nossa. Olhem para mim. Peguem o fósforo…
Ele acendeu o fósforo, uma bola de luz branca brotou da escuridão, e então o bibliotecário caiu sobre ele.
Todos conheciam o bibliotecário, da mesma forma clara e, ao mesmo tempo, difusa como conhecemos as paredes, o chão e todos os outros detalhes insignificantes, contudo necessários, ao palco da vida. Caso se lembrassem dele, era a lembrança vaga de vê-lo sentado debaixo da mesa, restaurando livros, ou se arrastando pelos corredores, atrás de fumantes. Qualquer mago tolo o bastante para arriscar acender um cigarro escondido logo não veria nada além da mão aveludada a lhe confiscar a bagana ofensiva. Mas o bibliotecário nunca armava fuzuê, limitando-se a parecer extremamente magoado com o fato e comer a guimba.
Ao passo que a criatura que vinha tentando desparafusar a cabeça de Aversal pelas orelhas era um pesadelo vivo, com os lábios revirados a fim de revelar longas presas amarelas.
Apavorados, os magos viraram para correr e se viram colidindo em estantes que agora, inexplicavelmente, bloqueavam os corredores. O mais baixo dos magos soltou um grito, rolou para debaixo de uma mesa cheia de atlas e pôs as mãos sobre os ouvidos para abafar os ruídos pavorosos dos outros magos, que tentavam escapar.
Por fim, não se ouviu nada além do silêncio, mas era aquele silêncio opressivo de quando alguma coisa se arrasta furtivamente, talvez à procura de outra coisa. Horrorizado, o mais baixo dos magos mordeu a ponta do chapéu.
A criatura, a se mover em silêncio, agarrou-o pela perna e puxou-o suave mas firmemente para fora, onde ele se lamuriou um pouco de olhos fechados e, depois, ao se dar conta de que dentes medonhos não haviam lhe cortado o pescoço, arriscou uma olhadela.
O bibliotecário ergueu-o pela nuca e o manteve suspenso a trinta centímetros do chão, fora do alcance do pequeno e velhusco terrier de pêlos duros, que tentava se lembrar de como era morder tornozelo de gente.
— Hã… — soltou o mago, e se viu arremessado pelo vão da porta destruída, onde sua queda foi aparada pelo chão.
Depois de um tempo, uma sombra ao seu lado disse:
— Bem, é isso. Alguém viu aquele imbecil desgraçado do Aversal?
E uma sombra, do outro lado, comentou:
— Acho que meu pescoço está quebrado.
— Quem está aí?
— Aquele imbecil desgraçado — respondeu a sombra, com rispidez.
— Ah. Desculpe, Aversal.
Aversal levantou-se, desta vez com o corpo inteiro contornado por uma aura mágica. Tremia de raiva ao erguer as mãos.
— Vou ensinar aquele retrocesso histórico a respeitar seus superiores evolucionários… — rosnou. — Peguem-no, rapazes!
E Aversal viu-se novamente jogado no chão, agora sob o peso dos cinco magos.
— Desculpe, mas…
— … você sabe que se usar…
— … magia perto da biblioteca, com toda a concentração que já existe aqui…
— … basta um errinho, forma-se a massa crítica, e aí…