— Impressionante — comentou Conina. — Seus magos são mais poderosos do que eu pensava.
Meus magos, não — protestou Rincewind. — Não sei de quem são eles. E não gosto nada disso. Os magos que conheço não sabem botar tijolo em cima de tijolo.
— Não me agrada a idéia de os magos governarem o mundo — observou Nijel. — E claro que, como herói, sou filosoficamente contra a idéia de magia. Ainda vai chegar o dia em que… — os olhos se vidraram, como se ele tentasse lembrar algo que tivesse visto em algum lugar — … vai chegar o dia em que a magia dos magos desaparecerá da face do Disco, e os filhos do, do… enfim, a gente pode ser um pouco mais prático — acrescentou, sem jeito.
Leu isso num livro, foi? — perguntou Rincewind, com azedume. — Algum múnus?
— Mas faz sentido — defendeu Conina. — Não tenho nada contra os magos, mas não servem para muita coisa. São mais como objetos decorativos, na verdade. Até agora eram, pelo menos.
Rincewind tirou o chapéu. Estava amassado, manchado e coberto de poeira. Faltavam pedaços, a ponta encontrava-se cortada, e a estrela soltava lantejoulas como se fosse pólen, mas ainda dava para ler a palavra “Maggo” sob a fuligem.
— Estão vendo isso aqui? — perguntou ele, com o rosto vermelho. — Estão vendo? O que quer dizer?
— Que você escreve errado? — sugeriu Nijel.
— O quê? Não! Quer dizer que sou mago! Vinte anos na profissão, e com orgulho! Cumpri meu tempo! Pass… fiz um monte de provas! Se juntássemos todos os feitiços que já li… teríamos uma porção de feitiços!
— Está bem, mas… — começou Conina.
Pensou um pouco mais e acrescentou:
— É isso o que dá tanto poder aos fonticeiros. O importante é saber o que se é.
Houve uma pausa filosófica.
— Rincewind? — chamou Conina, com delicadeza.
— Hummm? — soltou o mago, que ainda tentava entender — como as palavras haviam entrado em sua cabeça.
Você é realmente maluco. Sabia disso?
Todos parados.
O vizir Abrim surgiu de uma arcada. Usava o chapéu de arqui-reitor.
O deserto fritava ao calor do sol. Nada se movia, à exceção do ar tremeluzente, quente como um vulcão, seco como uma caveira.
O basilisco descansava à sombra de uma rocha, transpirando um muco amarelo e corrosivo. Durante os últimos cinco minutos, seus ouvidos haviam detectado o ruído de centenas de perninhas avançando pelas dunas, o que parecia indicar que o jantar se encontrava a caminho.
O animal piscou os olhos legendários e desenroscou seis metros de corpo faminto, serpenteando para a areia feito morte fluida.
A Bagagem parou e ergueu a tampa ameaçadoramente. O basilisco sibilou, mas um pouco incerto, porque jamais vira uma arca que andasse e principalmente, que tivesse dentes de jacaré presos à tampa. Também havia pedaços de couro animal pendurados ali, como se ela tivesse brigado numa fábrica de bolsas. E ela parecia fitá-lo de um modo que, mesmo se soubesse falar, o basilisco não saberia explicar.
Tudo bem, pensou o réptil, se é assim que você quer.
Dirigiu à Bagagem um olhar fixo de furador de diamantes, um olhar que atravessava o globo ocular e esfolava o cérebro por dentro, um olhar que rasgava as cortinas frágeis da janela da alma, um olhar que…
O basilisco se deu conta de que alguma coisa estava errada. Uma sensação completamente nova e inconveniente começou a crescer atrás de seus olhos. Principiou devagar, como uma coceirinha naqueles poucos centímetros quadrados das costas que não há contorcionismo que nos faça alcançar, e aumentou até virar um segundo sol, interno e abrasador.
O basilisco estava sentindo uma vontade medonha e irresistível de piscar…
Então fez uma coisa muito imprudente. Piscou.
— Ele está falando através do chapéu! — exclamou Rincewind.
— Hã? — perguntou Nijel, que já começava a perceber que o mundo bárbaro não era o lugar simples e direitinho que ele havia imaginado nos tempos em que a coisa mais animadora que já havia feito eram arranjos florais.
— O chapéu está falando através dele — corrigiu Conina, e recuou, como se costuma recuar na presença do hediondo.
— Hã?
— Não vou machucá-los. Vocês me foram úteis — disse Abrim, avançando com os braços estendidos. — Mas estão certos. Ele achou que teria poder, me usando. E óbvio que é o contrário. Uma mente extraordinariamente pervertida e arguta.
— Você experimentou a cabeça dele? — alarmou-se Rincewind.
O mago encolheu os ombros. Ele havia usado o chapéu. Era evidente que não possuía o tipo certo de mente. Abrim tinha o tipo certo de mente e agora também tinha olhos cinzentos, pele descorada e andava como se o corpo fosse suspenso pela cabeça.
Nijel havia tirado o livro da bolsa e virava as páginas, em desatino.
— O que está fazendo? — perguntou Conina, sem despregar os olhos do ser horripilante.
— Estou consultando o índice de Monstros Errantes — respondeu Nijel. — Você acha que é um morto-vivo? São dificílimos de matar, precisa de alho e…
— Não vai achar aí — avisou Rincewind, devagar. — É um… chapéu vampiro.
— Claro, talvez seja um zumbi — propôs Nijel, correndo o dedo pela página. — Aqui diz que precisa de pimenta-do-reino e sal marinho, mas…
— A gente só quer derrotar a criatura, não comer — protestou Conina.
— E o tipo de mente que posso usar — continuou o chapéu. — Agora, vou revidar, restaurar a magia dos magos. Só há lugar para um tipo de magia nesse mundo, e eu o represento. Atenção, fonticeria!
— Ah, não — murmurou Rincewind.
— A magia dos magos aprendeu muito nos últimos vinte séculos.
Essa presunçosa vai ver só. Vocês três, sigam-me.
Não era um pedido. Não era nem uma ordem. Era uma espécie de previsão do futuro. A voz do chapéu ia direto ao cérebro, sem se incomodar em lidar com a consciência. As pernas de Rincewind começaram a se mexer por conta própria.
Os outros dois também avançaram, andando com os estranhos movimentos de boneco a sugerir que também eles eram conduzidos por fios invisíveis.
— Por que “ah, não”? — indagou Conina. — Quer dizer, eu entendo “Ah, não” no sentido geral, mas tinha algum motivo particular?
— Na primeira oportunidade, temos de fugir — advertiu Rincewind.
— Sabe para onde?
— Provavelmente não vai fazer diferença. Estamos condenados, mesmo…
— Por quê? — perguntou Nijel.
— Bem — respondeu Rincewind. — Vocês já ouviram falar das Guerras Mágicas?
Muitas coisas no Disco deviam sua origem às Guerras Mágicas. A sábia madeira de pereira estava entre elas.
A árvore original era perfeitamente normal e passava os dias absorvendo água do solo e luz do sol, em estado de abençoada inconsciência, quando as guerras mágicas estouraram e levaram seus genes a um estado de grande lucidez.
Também a deixaram entranhada de mau humor. Mas a sábia madeira de pereira não se saiu tão mal.
Antigamente, quando o nível de magia no Disco era alto e aproveitava qualquer oportunidade para irromper no mundo, os magos mostravam-se todos tão poderosos quanto os fonticeiros, e erguiam torres no alto de cada montanha. E, se há uma coisa que mago não suporta, é outro mago. Suas investidas diplomáticas consistiam em lançar feitiços até que o outro explodisse, depois lançar maldições até que o tempo fechasse.
Isso só podia resultar em uma coisa. Tudo bem, duas coisas. Três coisas. Guerra. Taumatúrgica. Geral.
É claro que não havia alianças, lados, tratos, negociações, misericórdia nem trégua. O céu revolvia, mares fervilhavam. Raios de fogo transformavam a noite em dia, mas não havia problema, porque as decorrentes nuvens de fumaça negra transformavam o dia em noite. A terra subia e descia feito cobertor de lua-de-mel, e o tecido do próprio espaço criava nós multidimensionais e batia na pedra plana a margem do rio do Tempo. Um feitiço comum naquele tempo era o Compressor Temporal de Pelepel, que uma vez resultou numa espécie de répteis gigantescos que surgiram, evoluíram, reproduziram-se, prosperaram e foram destruídos no período de cinco minutos, deixando apenas ossadas no solo para iludir as gerações seguintes. Arvores nadavam, peixes andavam, montanhas iam às lojas comprar cigarros, e a mutabilidade da existência era tão grande que a primeira coisa que qualquer pessoa precavida fazia ao acordar era contar braços e pernas.