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Na verdade, esse foi o problema. Todos os magos se igualavam em termos de poder e viviam em torres altas para se proteger dos feitiços. O que significa que a maioria das armas mágicas atingia as pessoas normais, que apenas tentavam tirar sustento do que era, temporariamente, a terra, e levar uma vida decente e comum (embora curta).

Mas a luta continuava, comprometendo a própria estrutura do universo, enfraquecendo os muros da realidade e ameaçando empurrar todo o fraco edifício do tempo e do espaço para o breu do Calabouço das Dimensões…

Uma versão da história dizia que os deuses intervieram, mas os deuses não costumam se meter com o homem, a menos que isso os divertisse. Outra versão — e era essa a que os magos contavam e escreviam em seus livros — era que os próprios magos decidiram se unir e resolver suas diferenças, em prol da humanidade. Essa explicação geralmente era aceita como verdadeira, embora fosse tão plausível quanto um colete salva-vidas de chumbo.

A verdade não se deixa prender facilmente. Na banheira da história, a verdade é mais difícil de segurar do que sabonete, e muito mais difícil de achar…

— E então, o que aconteceu? — perguntou Conina.

— Não importa — respondeu Rincewind. — Vai começar tudo de novo. Estou sentindo. Minha intuição é boa. Tem magia demais rondando o mundo. Vai estourar uma guerra pavorosa! E o Disco está velho demais para resistir. Tudo já foi usado à exaustão. A ruína, o breu absoluto e a destruição vão se abater sobre nós. O apocralipse está próximo.

— O Morte mora ao lado — acrescentou Nijel, tentando ajudar.

— O quê? — perguntou Rincewind, irritado por se ver interrompido.

— Eu disse que o Morte mora ao lado — repetiu Nijel.

— Ao lado, eu não ligo — decidiu Rincewind. — Os vizinhos que se danem. O problema é que ele também vem aqui.

— É só uma metáfora — justificou Conina.

— Você é que pensa. Eu o conheci.

— Como era ele? — quis saber Nijel.

— Digamos que…

— Sim?

— Não precisa de cabeleireiro.

O sol, agora, parecia um maçarico suspenso no céu, e a única diferença entre a areia e cinzas quentes era a cor.

A Bagagem vagava pelas dunas ardentes. Vestígios de muco amarelo secavam rapidamente na tampa.

A pequena arca solitária era observada do alto de um penedo, com a forma e a temperatura de um tijolo refratário, por uma quimera. Para a descrição da quimera, vamos recorrer ao famoso bestiário de Nevoassoura, Anima Antinaturale: “Possui pernas de serheia, pêlo de thartaruga, dente de ghalinha e asa de cobra. Obviamente, não posso dar nadha além de minha palavra, uma vez que a criathura tem hálito de fhornalha e themperamento de balão de gás em vhendaval”.

A quimera era um animal extremamente raro, e aquela ali não estava a ponto de fazer nada que contribuísse para a preservação da espécie.

Com cautela, escolheu o melhor momento, deu impulso com as presas, dobrou as asas rijas e mergulhou em direção à vítima.

A técnica da quimera era descer bem baixo sobre a presa, cozinhando-a ligeiramente com o bafo flamejante, e rasgar o jantar com os dentes. Ela se saiu bem na parte do fogo, mas, no momento em que a experiência lhe dizia que deveria estar diante de uma vítima ferida e apavorada, descobriu-se em pleno chão, no caminho de uma Bagagem chamuscada e furiosa.

A única coisa incandescente na Bagagem era a raiva. Ela vinha sentindo dor de cabeça havia várias horas, durante as quais lhe parecera que o mundo todo tentara atacá-la. Pois bastava!

Depois de esmagar a quimera, transformando-a numa pequena poça engordurada na areia, ela se deteve por um instante, aparentemente pensando no futuro. Estava ficando claro que não pertencer a ninguém era mais difícil do que havia imaginado. Experimentou vagas e reconfortantes lembranças de remendos, consertos e um armário para chamar de seu.

Virou-se vagarosamente, parando várias vezes, a fim de abrir a tampa. Talvez farejasse o ar — se tivesse nariz. Por fim, chegou a uma conclusão.

O chapéu e seu usuário também avançavam, decididos, pelo chão de pedras que outrora fora o legendário Rhoxie, em direção à torre da fonticeria, com a relutante comitiva logo atrás.

Havia portas no pé da torre. Ao contrário das portas da Universidade Invisível, que viviam escancaradas, aquelas se encontravam trancadíssimas. Pareciam reluzir.

— Vocês três têm o privilégio de estar aqui — disse o chapéu, através da boca mole de Abrim. — Esse é o momento em que a magia dos magos pára de fugir — lançou um olhar fulminante para Rincewind — e começa a revidar. Vão se lembrar disso para o resto de suas vidas.

— Então, até a hora do almoço? — murmurou Rincewind.

— Observem com atenção — pediu Abrim.

Ele estendeu as mãos.

— Na primeira oportunidade — cochichou Rincewind —, a gente foge.

— Para onde?

— De onde — corrigiu Rincewind. — O que importa é de onde.

— Não confio nesse sujeito — observou Nijel. — Tento não julgar ninguém à primeira impressão, mas, realmente, acho que ele não é do bem.

— Ele atirou você na cova das serpentes!

— Talvez eu devesse ter lido os sinais.

O vizir começou a sussurrar. Nem Rincewind, cujos poucos talentos incluíam o dom para línguas, reconheceu o idioma, mas parecia o tipo de língua especialmente criada para sussurros, com as palavras se curvando feito foices à altura do tornozelo, escuras, vermelhas e inclementes. Elas traçavam rodopios complexos no ar e então se deixavam levar suavemente em direção à porta da torre.

O mármore branco ficou preto e esfacelou-se.

Enquanto os destroços caíam no chão, um mago apareceu e olhou Abrim, de alto a baixo.

Rincewind estava acostumado com a maneira espalhafatosa de os magos se vestirem, mas aquele ali era impressionante, com o manto tão acolchoado, ababadado e reforçado com dobras e pregas incríveis que provavelmente fora desenhado por um arquiteto. O chapéu que acompanhava o traje parecia a conjunção de um bolo de casamento com uma árvore de Natal.

O rosto, surgindo na pequena brecha aberta entre o colarinho rebuscado e a franja filigranada da aba, decepcionava um pouco. Em algum momento do passado, o mago havia achado que sua aparência melhoraria com um bigode fino. Estava enganado.

— Essa porta era nossa! — exclamou. — Você vai se arrepender!

Abrim dobrou os braços. Isso pareceu enfurecer ainda mais o mago. Ele ergueu os braços, desvencilhou as mãos da renda das mangas e lançou um raio pelo vão da porta.

O raio atingiu o peito de Abrim e estourou numa bolha incandescente, mas, quando os rastilhos de imagens azuis deixaram Rincewind ver novamente, Abrim estava incólume.

Em desatino, o adversário bateu a última das chamas de sua própria roupa e levantou o rosto, com olhar assassino.

— Você não está entendendo — vociferou. — Isso aqui é fonticeria. Não se pode lutar contra a fonticeria.