O palácio estava caindo aos pedaços, e os pedaços irrompiam no ar como uma erupção vulcânica às avessas. A torre da fonticeria havia desaparecido. As pedras lançavam-se para o local em que ela estivera e…
— Estão construindo outra torre! — exclamou Nijel.
— Com material do meu palácio — reclamou Creosoto.
— O chapéu venceu — concluiu Rincewind. — E, por isso, está construindo sua própria torre. E uma espécie de reação. Os magos sempre ergueram torres, como aqueles… qual é o nome daquele negócio que fica nos rios?
— Sapo?
— Pedra?
— Gângster mal sucedido.
— Eu estava falando de frigana — esclareceu Rincewind. — Quando qualquer mago se preparava para brigar, a primeira coisa que fazia era construir uma torre.
— E enorme — comentou Nijel.
Rincewind assentiu.
— Para onde vamos? — perguntou Conina.
O mago estremeceu.
— Para longe — respondeu.
O muro do palácio estendia-se logo abaixo. Ele começou a tremer, e os tijolos puseram-se a avançar em direção à tempestade de pedras voadoras que zuniam ao redor da nova torre.
Por fim, Conina perguntou:
— Como conseguiu botar o tapete para voar? Ele realmente faz o contrário do que é pedido?
— Não. Só prestei atenção a alguns detalhes fundamentais do arranjo espacial.
— Não entendi — admitiu.
— Quer que eu explique sem usar o jargão mágico?
— Quero.
— Você abriu o tapete de cabeça para baixo — resumiu Rincewind.
Conina permaneceu quieta durante algum tempo. Depois disse:
— Que desconforto! E a primeira vez que viajo de tapete.
— É a primeira vez que eu dirijo — comentou Rincewind, distraído.
— Está indo muito bem — elogiou a moça.
— Obrigado.
— Você disse que tinha medo de altura.
— Pavor.
— Não parece.
— Não estou pensando no assunto.
Rincewind virou-se e olhou para a torre. Ela havia crescido um bocado no último minuto, criando no topo um jogo complicado de torreões e ameias. Um enxame de ladrilhos pairava próximo. As peças desciam e se encaixavam no lugar certo. A torre era absurdamente alta: as pedras da base teriam se partido, não fosse a magia que crepitava dentro delas.
Bem, aquele era o fim da magia organizada. Dois mil anos de paz mágica haviam escoado pelo ralo. As torres erguiam-se novamente e, com toda aquela magia em estado bruto, alguém se sairia muito mal. Provavelmente o universo. Magia demais pode comprometer o tempo e o espaço, e isso não é nada bom para as pessoas que cresceram acostumadas com coisas do tipo efeito vindo depois da causa.
Mas é claro que seria impossível explicar isso para os seus companheiros. Eles pareciam não captar as idéias de maneira adequada. Mais exatamente, pareciam não entender o conceito de ruína. Sofriam da terrível ilusão de que alguma coisa sempre poderia ser feita. Pareciam dispostos a transformar o mundo, ou morrer tentando. E o problema de morrer tentando era que se morria tentando.
Todo o objetivo da antiga organização da Universidade era manter algum tipo de paz entre os magos, que se relacionavam uns com os outros com a mesma docilidade de gatos enfiados num saco. Agora que as luvas haviam sido retiradas, qualquer um que tentasse se intrometer acabaria terrivelmente arranhado. Aquela não era a velha magia suave, e um tanto tola, com que o mundo estava acostumado. Era a guerra mágica, incandescente e abrasadora.
Rincewind não era muito bom em premonição. Aliás, mal conseguia ver o presente. Mas tinha certeza absoluta de que, num futuro bem próximo, como dali a trinta segundos, alguém diria: “Deve ter alguma coisa que a gente possa fazer”.
O deserto abria-se lá embaixo, iluminado pelos raios do poente.
— Parece que não tem muitas estrelas — comentou Nijel. — Pode ser que elas estejam com medo de sair.
Rincewind olhou para cima. Havia uma névoa prateada no alto.
— E a magia em estado bruto, caindo da atmosfera — informou. — Está saturada.
Vinte e sete, vinte e oito, vinte e…
— Deve ter alguma… — começou Conina.
— Não tem — cortou Rincewind, rispidamente, mas com uma ponta de satisfação. — Os magos vão brigar entre si até que haja apenas um vencedor. Não tem nada que ninguém possa fazer.
— Eu gostaria de uma bebida — suspirou Creosoto. — Será que não podemos parar em algum lugar para eu comprar uma taverna?
— Com o quê? — indagou Nijel. — Você agora é pobre, esqueceu?
— A pobreza não me incomoda — garantiu o xerinfe. — É a lucidez que me mata!
Conina cutucou Rincewind.
— Você está conduzindo esse negócio? — perguntou.
— Não.
— Então, para onde ele está indo?
Nijel olhou para baixo.
— Pelo jeito, está indo para o Meio — disse ele. — Em direção ao Mar Círculo.
— Alguém deve estar conduzindo.
Oi, soou uma voz amistosa na cabeça de Rincewind.
Não é minha consciência de novo, é?, imaginou ele.
Estou péssima.
Sinto muito, pensou Rincewind, mas nada disso é culpa minha. Sou apenas vítima das circunstâncias. Não sei por que deveria me sentir responsável.
Tudo bem, mas você poderia tomar alguma atitude.
Como o quê?
Destruir o fonticeiro. Tudo isso viria abaixo.
Eu não teria nem chance.
Poderia, ao menos, morrer tentando. Seria melhor do que deixar estourar uma guerra mágica.
— Cale a boca, está bem? — irritou-se Rincewind.
— O quê? — perguntou Conina.
— Hein? — indagou o mago, distraído. Ele olhou para o desenho azul e dourado, e acrescentou: — Você está guiando, não está? Através de mim! Isso é traição!
— Do que está falando?
— Ah. Desculpe. Pensando alto.
— Acho melhor a gente pousar — sugeriu Conina.
Eles voaram para uma praia em meia-lua, onde o deserto encontrava o mar. A luz normal, a praia teria sido de um branco ofuscante, com a areia composta de bilhões de minúsculos fragmentos de concha, mas, àquela hora do dia, mostrava-se avermelhada e primordial. Muitos pedaços de madeira, desgastados pelas ondas e embranquecidos pelo sol, amontoavam-se na margem, como a ossada de peixes antigos ou a maior bancada de acessórios de arte floral no mundo. Nada se mexia, além das ondas. Havia algumas rochas ao redor, mas estavam quentíssimas e não serviam de lar para nenhum molusco ou alga marinha.
Até o mar parecia árido. Se qualquer anfíbio primitivo houvesse chegado a uma praia daquelas, teria desistido no ato, voltado para a água e avisado aos parentes que esquecessem a idéia de ter patas, que não valia a pena. O ar parecia cozido.
Ainda assim, Nijel insistiu para que acendessem uma fogueira.
— É mais simpático — argumentou. — Além do mais, pode haver monstros.
Conina mirou as ondinhas fracas, atingindo a praia no que parecia uma tentativa desanimada de sair do mar.
— Naquilo? — perguntou.
— A gente nunca sabe.
Rincewind vagava pela margem, distraidamente pegando pedras e jogando-as no mar. Uma ou duas voltaram.
Depois de algum tempo, Conina conseguiu acender a fogueira, e um pedaço de madeira seca e salgada soltava chamas azuis e verdes, sob uma cascata de faíscas. O mago sentou-se nas sombras dançantes, encostado numa pilha de madeiras embranquecidas e envolto numa tristeza tão impenetrável que até Creosoto parou de reclamar de sede e se calou.
Conina acordou depois da meia-noite. Havia uma lua crescente no horizonte, e uma névoa fina e fria cobria a areia. Creosoto roncava, deitado de costas. Nijel, que teoricamente estaria de guarda, ressonava.