Conina permaneceu imóvel, com todos os sentidos voltados para o que a havia despertado.
Por fim, ouviu novamente. Era um tinido baixo, quase inaudível sob o barulho abafado do mar.
Ela se levantou, ou melhor, deslizou para a vertical como se tivesse menos ossos do que uma água-viva e tirou a espada das mãos inertes de Nijel. Avançou por entre a névoa, sem perturbá-la.
O fogo minguava, em meio às cinzas. Depois de algum tempo, Conina voltou ao acampamento e acordou os outros dois.
— Guivoi?
— Acho que vocês precisam ver isso — sussurrou. — Talvez seja importante.
— Só fechei os olhos por um segundo… — desculpou-se Nijel.
— Não tem problema. Venham.
Creosoto passou a vista no acampamento improvisado.
— Cadê o mago?
— Vocês vão ver. E não façam barulho. Pode ser perigoso.
Eles seguiram a menina em direção ao mar, afundados até o joelho na névoa.
Por fim, Nijel perguntou:
— Por que perigoso…?
— Psiu! Escutaram?
Nijel aguçou os ouvidos.
— Meio que um tinido?
— Olhem…
Rincewind caminhava aos trancos pela praia, carregando uma enorme pedra redonda nas mãos. Passou por eles sem dizer palavra, com os olhos fixos à frente.
Os três seguiram-no pela praia fria, até ele alcançar uma área vazia entre as dunas, onde parou e, ainda se movendo com a elegância de um cabide de pé, largou a pedra. Ela soltou um tinido.
Havia um grande círculo de pedras. Pouquíssimas, de fato, encontravam-se em cima umas das outras.
Os três se agacharam e observaram-no.
— Ele está dormindo? — perguntou Creosoto.
Conina assentiu.
— O que está tentando fazer?
— Acho que uma torre.
Rincewind voltou ao círculo de pedras e, com grande cuidado, soltou outra pedra no ar. Ela caiu.
— Não é muito bom no negócio — considerou Nijel.
— Uma tristeza — confirmou Creosoto.
— Talvez devêssemos acordá-lo — sugeriu Conina. — Só que eu ouvi dizer que, quando acordamos o sonâmbulo, ele perde as pernas. Ou algo assim. O que vocês acham?
— Com os magos, pode ser arriscado — advertiu Nijel.
Os três tentaram se acomodar melhor na areia fria.
— É lamentável — rebateu Creosoto. — Ele nem é exatamente mago.
Conina e Nijel tentaram evitar o olhar um do outro. Por fim, o rapaz tossiu e falou:
— Também não sou exatamente um herói bárbaro. Vocês já devem ter notado.
Eles observaram o vulto diligente de Rincewind durante algum tempo, e Conina admitiu:
— Se a questão é essa, acho que me falta talento para cabeleireira.
Ambos fitaram o sonâmbulo, entretidos em pensamentos e corados de constrangimento mútuo. Creosoto pigarreou.
— Se isso ajuda — disse ele —, às vezes acho que minha poesia deixa muito a desejar.
Com cuidado, Rincewind tentou equilibrar uma pedra enorme num pequeno calhau. Ela tombou, mas o mago se mostrou satisfeito com o resultado.
— Falando como poeta — perguntou Conina, com tato —, o que você diria sobre essa situação?
Creosoto se mexeu, pouco à vontade.
— Negocinho engraçado, a vida — respondeu.
— Bem apropriado.
Nijel deitou-se e olhou as estrelas anuviadas. Depois, sentou-se ereto.
— Viram aquilo? — perguntou.
— O quê?
— Era uma espécie de relâmpago, meio…
O horizonte explodiu num mar silencioso de cores, que atravessou rapidamente todos os matizes do espectro convencional, depois reluziu numa octarina cintilante.
Durante algum tempo, ouviu-se um trovão longínquo.
— Algum tipo de arma mágica — imaginou Conina.
Uma lufada de vento quente agitou a névoa.
— Chega! — decidiu Nijel. — Vou acordá-lo, mesmo que isso signifique ter de carregá-lo depois.
Ele estendeu o braço em direção ao ombro de Rincewind no momento exato em que alguma coisa passava voando no céu, fazendo o barulho de uma revoada de gansos sob efeito de oxido nitroso. A coisa desapareceu no deserto. Seguiram-se um ruído que teria mexido até com nervos de aço, um raio de luz verde e um estrondo.
— Eu o acordo — decidiu Conina. — Vocês pegam o tapete.
Ela se dirigiu ao círculo de pedras e tomou o mago suavemente pelo braço. Aquele teria sido um modo exemplar de acordar um sonâmbulo, não fosse Rincewind deixar cair no próprio pé a pedra que vinha segurando. Ele abriu os olhos.
— Onde estou? — perguntou.
— Na praia. Você estava… hã… sonhando.
Rincewind olhou a névoa, o céu, o círculo de pedras, Conina, novamente o círculo de pedras, e outra vez o céu.
— O que aconteceu? — perguntou.
— Uns fogos de artifício mágicos.
— Ali. Então começou.
Ele saiu cambaleante do círculo, dando a entender que talvez ainda não estivesse completamente acordado, e avançou para onde se encontravam os restos da fogueira. Arriscou alguns passos e pareceu se lembrar de alguma coisa.
Olhou o pé e disse:
— Ai!
Quase havia chegado até a fogueira quando a rajada do último feitiço os alcançou. O alvo havia sido a torre de Al Khali, que ficava a trinta quilômetros de distância, e a essa altura a frente de onda já se mostrava extremamente difusa. Mal afetava a natureza das coisas ao avançar pelas dunas com um leve ruído de sucção. A fogueira ardeu vermelha e verde por um segundo, uma das sandálias de Nijel virou um pequeno texugo nervoso, e um pombo saiu voando do turbante do xerinfe.
Depois, a rajada avançou para o mar.
— O que foi aquilo? — perguntou Nijel.
Ele chutou o texugo, que lhe cheirava o pé.
— Hein? — indagou Rincewind.
— Aquilo!
— Ah, aquilo — disse Rincewind. — O recuo de um feitiço. Provavelmente atingiu a torre de Al Khali.
— Deve ter sido enorme para nos alcançar aqui.
— Deve, sim.
— Ei, aquele palácio era meu — resmungou Creosoto. — Sei que era muito, mas era tudo que eu tinha.
— Que pena.
— Tinha gente na cidade!
— Devem estar bem — calculou Rincewind.
— Menos mal.
— Embora não necessariamente em forma de gente.
— O quê?
Conina pegou-lhe o braço.
— Não grite com ele — pediu. — Ele não é o mesmo.
— Ah — disse Creosoto. — Um progresso.
— Você está sendo um pouco injusto — protestou Nijel. — Quer dizer, ele me tirou da cova das serpentes e, bem, conhece muitas…
— E, os magos são excelentes para nos tirar do tipo de problema em que só eles conseguem nos meter — rebateu Creosoto. — E, depois, esperam que agradeçamos.
— Ah, eu acho…
— Alguém precisa dizer isso — insistiu Creosoto, agitando as mãos, irritado.
Por um instante, ele se viu iluminado pela passagem de outro feitiço no céu turbulento.
— Olhem só! — continuou. — Ah, ele é bonzinho. Todos são muito bonzinhos. Devem achar que o Disco seria um lugar melhor se eles estivessem no comando. Vão por mim, não tem nada pior do que gente querendo ajudar. Magos! No fim, servem para quê? Vocês podem me dizer alguma coisa de útil que eles tenham feito?
— Você está sendo cruel — contestou Conina, mas com uma inflexão de voz que sugeria que ela estava disposta a se deixar persuadir.
— Eles me enojam — murmurou Creosoto, que estava sóbrio e não gostava da sensação.
— Acho que vamos nos sentir melhor se tentarmos dormir um pouco mais — propôs Nijel, diplomaticamente. — Tudo sempre parece melhor à luz do dia. Enfim, quase sempre.