Ele saltou para a bola de fogo e agarrou a vara.
Os magos debandaram. Vários saíram da torre levitando.
Foram mais perspicazes do que os que usaram a escada, porque, cerca de trinta segundos depois, a torre desaparecia.
Continuou nevando em torno da coluna de breu, que zumbia.
Os magos sobreviventes que ousaram olhar para trás viram um pequeno objeto caindo devagar do céu, deixando para trás um rastro de chamas. O negócio atingiu o chão de pedras, onde ardeu um pouco, até a neve apagar o fogo.
Logo virava apenas um montículo.
Pouco tempo mais tarde, um vulto acocorado avançou pelo jardim, cavou a neve e pescou o objeto.
Era, ou tinha sido, um chapéu. A vida não fora generosa com ele. Grande parte da aba larga havia se queimado, a ponta já não existia, e era quase impossível ler as foscas letras prateadas. De qualquer forma, algumas haviam se desprendido. As que restavam diziam: MG.
O bibliotecário virou-se devagar. Estava completamente só, à exceção da coluna de breu ardente e dos flocos de neve a cair compassadamente.
O campus estava vazio. Havia outros chapéus pontudos pisoteados por pés aterrorizados, mas nenhum outro sinal de que houvera gente ali.
Todos os magos haviam sumido.
— Guerra?
— Uguê?
— Não tinha alguma coisa?-perguntou Peste, pegando o copo.
— Uguê?
— A gente deveria estar… tem alguma coisa que a gente deveria estar fazendo — disse Fome.
— É verrrdade. Um compromisso.
— O… — Peste fitou o drinque, pensativo. — Negócio.
Em desalento, os três miraram o balcão. O dono da taverna fugira havia muito tempo. Ainda havia várias garrafas fechadas.
— Quiabo — sugeriu Fome, afinal. — Era isso.
— Nããã.
— Apôs… apóstrofe — arriscou Guerra.
Os outros sacudiram a cabeça. Houve uma pausa demorada.
— O que significa “aprótrafe”? — indagou Peste, contemplando algum mundo particular.
— Adstringente — respondeu Guerra. — Eu acho.
— Então, não é isso.
— Acho que não — concordou Fome, taciturno.
Houve mais um silêncio demorado.
— Melhor tomar outra dose — sugeriu Guerra, endireitando-se na cadeira.
— Tem razão.
A cerca de oitenta quilômetros dali, e várias centenas de metros acima, Conina conseguiu, afinal, controlar o cavalo roubado e fazê-lo trotar com suavidade pelo céu, revelando uma das faltas de preocupação mais determinadas que o Disco já vira.
— Neve? — surpreendeu-se ela.
As nuvens avançavam em silêncio, vindas do Centro. Eram fofas, pesadas e não deveriam se mover tão depressa. Abaixo delas, a tempestade de neve cobria a paisagem de branco.
Não parecia o tipo de neve que cai tranqüilamente durante a noite e, de manhã, transforma a paisagem numa maravilha luminosa, de beleza rara e etérea. Parecia o tipo de neve que pretende deixar o mundo o mais gelado possível.
— Meio fora de época — comentou Nijel.
Ele olhou para baixo e imediatamente fechou os olhos. Creosoto observava, encantado.
— É assim que acontece? — perguntou. — Eu só ouvia falar nas histórias. Achei que brotasse do chão. Como os cogumelos.
— Essas nuvens não estão direitas — notou Conina.
— A gente pode descer agora? — pediu Nijel, num murmúrio.
— Quando a gente estava andando, não parecia tão ruim.
Conina ignorou-o.
— Esfregue a lâmpada — ordenou ela. — Quero saber sobre isso.
Nijel vasculhou a bolsa e pegou a lâmpada.
A voz do gênio se fez ouvir, metálica e distante, dizendo:
— Pedimos um pouco de calma… Estamos tentando fazer a ligação. Seguiu-se uma musiquinha tilintante, do tipo que um chalé suíço talvez produzisse se pudéssemos tocá-lo, até que um alçapão se esboçou no ar e o gênio apareceu. Ele olhou à volta, depois para eles.
— Ah, uau! — exclamou.
— Está acontecendo alguma coisa com o clima — mencionou Conina. — Por quê?
— Vocês não sabem? — surpreendeu-se o gênio.
— Estamos perguntando, não estamos?
— Bem, não sou nenhum entendido, mas me parece o Apocralipse.
— O quê?
O gênio encolheu os ombros.
— Os deuses sumiram — apontou. — E, de acordo com a lenda, isso significa que…
— Os Gigantes do Gelo — disse Nijel, num sussurro apavorado.
— Fale alto — pediu Creosoto.
— Os Gigantes do Gelo — repetiu Nijel, com uma ponta de irritação. — Os deuses os mantinham aprisionados no Centro. Mas no fim do mundo eles vão se libertar e fugir, naquelas geleiras medonhas, e recobrar seu antigo domínio, subjugando as chamas da civilização, até que o mundo se encontre exposto e congelado sob as hediondas estrelas frias, até que o próprio Tempo congele. Ou algo parecido.
— Mas não é hora do Apocralipse — objetou Conina, em desespero. — Quer dizer, tem de surgir um soberano terrível, tem de haver uma guerra horrenda, os quatro cavaleiros têm de aparecer e, então, o Calabouço das Dimensões vai se abrir no mundo…
Ela se deteve, o rosto quase tão branco quanto a neve.
— Ficar enterrado em milhares de metros de gelo me parece tão terrível quanto isso — argumentou o gênio.
Ele estendeu o braço e tirou a lâmpada das mãos de Nijel.
— Muchas desculpas — pediu. — Mas chegou a hora de liquidar meus bens nesta realidade. A gente se vê por aí.
Desapareceu até a cintura e, então, com um último grito fraco de “Uma pena o nosso almoço”, sumiu por completo.
Por entre os véus de neve, os três contemplaram o Centro.
— Deve ser minha imaginação — disse Creosoto. — Mas vocês estão ouvindo uma espécie de chiado?
— Cale a boca — pediu Conina, distraída.
Creosoto aproximou-se dela e apertou-lhe a mão.
— Animo — arriscou. — Não é o fim do mundo.
Pensou um pouco no que disse, e acrescentou:
— Desculpe. Modo de dizer.
— O que vamos fazer? — cortou ela.
Nijel se aprumou:
— Acho que deveríamos ir até lá e explicar.
Os outros dois viraram-se para ele com o tipo de expressão normalmente dispensada a messias ou imbecis completos.
— É — insistiu ele, com um pouco mais de segurança. — Deveríamos explicar.
— Explicar aos Gigantes do Gelo? — perguntou Conina.
— É.
— Desculpe — pediu Conina. — Será que entendi direito? Você acha que a gente deveria procurar os apavorantes Gigantes do Gelo e dizer a eles que existem muitas pessoas aqui que prefeririam que eles não passassem pelo Disco, esmagando todo o mundo com montanhas de gelo, e solicitar que reconsiderassem o assunto. E isso o que você acha que a gente deve fazer?
— É. Exatamente.
Conina e Creosoto entreolharam-se. Nijel mantinha-se sentado com altivez na sela, um leve sorriso no rosto.
— Os seus mulos estão incomodando? — perguntou o xerinfe.
— Múnus — corrigiu Nijel, com calma. — Não está me incomodando nada. Só que preciso ter algum ato de bravura antes de morrer.
— Mas é exatamente isso — observou Creosoto. — Essa é a triste questão. Você vai ter o seu ato de bravura e morrer.
— Que alternativa temos? — indagou Nijel.
Eles consideraram a pergunta.
— Acho que não sou muito boa em explicar — lamentou Conina, baixinho.
— Eu sou — afirmou Nijel. — Estou sempre tendo de explicar.
As partículas dispersas do que havia sido a mente de Rincewind se juntaram e subiram pelas camadas escuras do inconsciente, como cadáver de três dias flutuando até a superfície.