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A mente investigou as lembranças mais recentes, da mesma maneira como se toca casca fresca de ferida.

O mago recordou qualquer coisa sobre uma vara e uma dor tão intensa que era como se lhe enfiassem um cinzel entre cada uma das células do corpo e martelassem.

Lembrou-se da vara fugindo, arrastando-o consigo. Depois lhe ocorreu a parte horrorosa em que Morte surgia e passava por ele. A vara se contorcia e, de repente, ganhava vida. Aí Morte falava:

— IPSLORE, O VERMELHO, VOCÊ É MEU.

E agora aquilo.

Pela textura, Rincewind estava deitado em areia. Numa areia muito fria.

Arriscou ver um troço medonho qualquer e abriu os olhos.

A primeira coisa que viu foi seu braço esquerdo, surpreendentemente acompanhado da mão. Era o mesmo negócio imundo de sempre. Ele vinha esperando ver um coto. Parecia noite. A praia, ou o que quer que fosse aquilo, estendia-se em direção a uma fileira de montanhas baixas, sob o céu noturno, coberto de estrelas.

Pouco mais perto, havia uma linha irregular na areia prateada. Ele ergueu a cabeça e viu uma profusão de gotículas de metal fundido. Era octirona, metal tão intrinsecamente mágico que nenhuma forja no Disco jamais conseguira aquecer.

— Ah — disse Rincewind. — Então nós ganhamos.

Ele se deixou cair outra vez.

Depois de algum tempo, a mão direita levantou-se automaticamente e apalpou o alto da cabeça. Em seguida, apalpou as laterais da cabeça. Depois começou a tatear, cada vez com maior urgência, a areia à volta.

Por fim, deve ter comunicado sua preocupação ao resto do corpo, porque o mago logo se sentou e resmungou:

— Ah, inferno!

O chapéu não estava em lugar nenhum. Mas dava para ver um pequeno vulto branco deitado na areia, a poucos metros dali, perto da…

Coluna de luz.

Ela oscilava e zumbia no ar, um canal tridimensional para outro lugar. Ocasionais rajadas de neve sopravam dali. Era possível ver imagens tortas na luz, que talvez fossem prédios ou paisagens distorcidas pela curvatura estranha. Mas não dava para ver com muita clareza, por causa das sombras altas que a cercavam.

A mente humana é um negócio impressionante. Ela opera em vários níveis ao mesmo tempo. E, de fato, enquanto Rincewind gastava tutano reclamando e procurando o chapéu, uma parte interior de seu cérebro observava, ponderava, analisava e fazia comparações.

Foi até o cerebelo, bateu-lhe de leve no ombro, botou uma mensagem em sua mão e saiu correndo.

A mensagem dizia mais ou menos o seguinte: Espero que eu esteja bem. A última experiência mágica foi demais para o castigado tecido da realidade. Abriu um buraco. Eu estou no Calabouço das Dimensões. E as coisas na minha frente são… as Coisas. Foi muito bom me conhecer.

Particularmente, a coisa que se encontrava próxima de Rincewind tinha, pelo menos, seis metros de altura. Parecia um cavalo morto, desenterrado após três meses e apresentado a uma gama de novas experiências, entre as quais, ao menos uma incluía um polvo. Não havia notado Rincewind. Estava concentrada demais na luz. Rincewind arrastou-se até o corpo inerte de Coin e cutucou-o.

— Você está vivo? — perguntou. — Se não estiver, prefiro que não responda.

Coin se virou e, com olhos intrigados, fitou o mago. Depois de um tempo, disse:

— Eu me lembro…

— Melhor não — cortou Rincewind.

O menino tateou a areia.

— Não está mais aqui — informou o mago, num murmúrio.

O menino parou de tatear.

Rincewind ajudou-o a se sentar. Coin mirou a areia fria e prateada, depois o céu, depois as Coisas distantes, depois Rincewind.

— Não sei o que fazer — lamentou.

— Sem problema. Eu nunca soube o que fazer — observou Rincewind, com alegria forçada. — A vida inteira andei na incerteza. — Ele hesitou. — Acho que isso se chama ser humano, ou qualquer coisa assim.

— Mas eu sempre soube o que fazer.

Rincewind abriu a boca para dizer que chegara a ver um pouco do que ele estava falando, mas mudou de idéia. Em vez disso, arriscou:

— Anime-se! Veja o lado bom! Poderia ser pior!

Coin correu os olhos ao redor.

— Em que aspecto, exatamente? — perguntou, com a voz já mais normalizada.

— Hum.

— Que lugar é esse?

— Uma espécie de outra dimensão. Acho que a magia irrompeu aqui, e nós viemos junto.

— E essas coisas?

Ambos olharam as Coisas.

— Acho que são as Coisas. Estão tentando voltar pelo canal — explicou Rincewind. — Não é fácil, por causa dos níveis de energia, ou algo assim. Já tive uma aula sobre isso. Hã…

Coin estendeu a mão branca e magra para a testa de Rincewind.

— Posso…? — começou ele.

Rincewind arrepiou-se ante o toque.

— Pode o quê? — perguntou.

— Dar uma olhada dentro da sua cabeça?

— Aaargh.

Está uma bagunça, aqui. Não me admira que você não encontre nada.

— Eeergh.

Precisa de uma faxina.

— Ooogh.

— Ah.

Rincewind sentiu a presença se retirar. Coin franziu a testa.

— Não podemos deixá-las passar — objetou o menino. — Elas têm poderes horríveis. Estão tentando aumentar o canal, e podem conseguir. Procuram entrar no nosso mundo desde… — ele franziu as sobrancelhas — outras iras.

— Eras — corrigiu Rincewind.

Coin abriu a mão que estava fechada e mostrou a Rincewind uma pequena pérola cinza.

— Sabe o que é isso? — perguntou.

— Não. O que é?

— Eu… não me lembro. Mas temos de devolvê-la.

— Tudo bem. Use a fonticeria. Estoure isso tudo aqui, e vamos para casa.

— Não. Elas vivem de magia. Só pioraria a situação. Não posso usar magia.

— Tem certeza? — insistiu Rincewind.

— Sua memória era bem clara a esse respeito.

— Então, o que vamos fazer?

— Não sei!

Rincewind pensou um pouco no assunto e, com ar de determinação, começou a tirar a última meia.

— Não tem meio tijolo — sussurrou, para ninguém em especial. — Vou ter de usar areia.

— Você vai atacar as Coisas com essa meia?

— Não. Vou fugir. A meia é para quando me seguirem.

As pessoas já estavam voltando para Al Khali, onde a torre destruída não passava de um monte enfumaçado de pedras. Algumas almas corajosas prestavam atenção nos escombros, pensando que talvez houvesse sobreviventes a serem resgatados ou roubados, ou ambos.

E, em meio ao entulho, poder-se-ia ouvir a seguinte conversa:

— Tem alguma coisa se mexendo ali debaixo!

— Debaixo daquilo? Pelas duas barbas de Imtal, você escutou mal. Aquilo deve pesar uma tonelada.

— Aqui, irmãos!

Aí se ouviriam muitos suspiros, e então:

— É uma arca!

— Pode ter tesouro, vocês não acham?

— Estão brotando pernas, pelas Sete Luas de Nasreem!

— Cinco luas…

— Aonde ela foi? Aonde ela foi?

— Não interessa, não tem importância. Agora, vamos deixar uma coisa bem clara: de acordo com a lenda, são cinco luas…

Em Klatch, levam a mitologia muito a sério. Só não acreditam mesmo é na vida real.

Os três cavaleiros sentiram a mudança logo ao descer pelas nuvens carregadas de neve, na extremidade mais ao Centro da Planície Sto. Havia um cheiro forte no ar.

— Estão sentindo? — perguntou Nijel. — Eu me lembro bem de quando era pequeno e ficava deitado na cama, no primeiro dia de inverno, sentindo o cheiro…

As nuvens se abriram, e lá embaixo — enchendo as altas planícies de ponta a ponta — estavam os rebanhos dos Gigantes do Gelo.