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Palavras sem muitas letras curvilíneas, portanto.

— Eu queria não estar aqui — murmurou.

Ergueu a meia, girou-a uma ou duas vezes e atingiu o que esperava ser a rótula da Coisa.

Ela soltou um guincho agudo, girou freneticamente com as asas se abrindo, investiu vagamente a cabeça predatória contra Rincewind e recebeu outro golpe da meia.

Quando a Coisa cambaleou para trás, Rincewind correu os olhos ao redor e viu Coin parado no mesmo lugar em que o havia deixado. Horrorizado, notou que o garoto começava a avançar em direção a ele, com as mãos instintivamente erguidas para lançar a magia que, ali, seria a maldição de ambos.

— Fuja, idiota! — gritou o mago, quando a Coisa começou a se recompor para o contra-ataque. Do nada, ocorreram a ele as palavras certas: — Você sabe o que acontece com os meninos que não se comportam.

Coin empalideceu, deu meia-volta e correu para a luz. Avançava com dificuldade, lutando contra a ladeira entrópica. A imagem distorcida do mundo virado às avessas pairava a alguns metros de distância, depois centímetros, sempre oscilando…

Um tentáculo fechou-se em sua perna, fazendo-o tropeçar.

Ele agitou as mãos ao cair, e uma delas tocou neve. Imediatamente, foi agarrada por outra coisa que parecia uma luva de couro quente e macia, mas sob cujo toque suave havia uma força inacreditável, e que o puxou adiante, levando junto o que quer que o havia pegado.

Luz e escuridão se alternaram ao redor, e de repente ele deslizava sobre um chão de pedras coberto de gelo.

O bibliotecário soltou Coin e se levantou, com um grande pedaço de pau na mão. Por um instante, o macaco recuou para o breu. O ombro, o cotovelo e o punho do braço direito estenderam-se com a graça de uma alavanca. E, num movimento tão irrefreável quanto o nascimento da inteligência, ele desferiu o golpe. Ouviu-se o barulho de esmagamento e um guincho de dor, e a pressão sobre a perna de Coin desapareceu.

A coluna escura ondulou. Dela, vinham gritos e baques distorcidos pela distância.

Coin ergueu-se com dificuldade e começou a correr de volta para a escuridão, mas dessa vez o braço do bibliotecário bloqueou o caminho.

— Não podemos deixá-lo lá!

O macaco encolheu os ombros.

Veio outro estalido da escuridão, seguido por um momento de silêncio quase absoluto.

Mas apenas quase absoluto. Ambos imaginaram ouvir a distância, mas muito nitidamente, o ruído cada vez mais longínquo de pés correndo.

O barulho repercutiu no mundo em que se encontravam. O macaco correu os olhos à volta e empurrou Coin para o lado quando um negócio atarracado com centenas de perninhas surgiu correndo pelo jardim em ruína e saltou para a escuridão oscilante, que bruxuleou uma última vez e desapareceu.

Houve uma súbita agitação de neve onde ele estivera.

Coin se soltou do bibliotecário e correu para o círculo, que já se mostrava branco. Os pés do menino tocaram um bocado de areia fina.

— Ele não saiu! — exclamou o garoto.

— Oook — concordou o bibliotecário, de modo filosófico.

— Achei que fosse sair. No último minuto.

— Oook?

Coin olhou fixamente para o chão de pedras, como se pudesse mudar o que viu pela força do pensamento.

— Ele está morto?

— Oook — respondeu o bibliotecário, tentando indicar que Rincewind estava num lugar onde até mesmo coisas como o tempo e o espaço eram um pouco duvidosas, e que não adiantava muito especular sobre seu estado exato àquela altura da vida, se é que ele de fato se encontrava em alguma altura da vida. E que, fosse como fosse, o mago poderia até aparecer no dia seguinte ou, sendo o caso, no dia anterior e, por fim, que, se houvesse a menor chance de sobrevivência, Rincewind seguramente sobreviveria.

— Ah — disse Coin.

Ele observou o bibliotecário caminhar pesadamente de volta à Torre de Arte e sentiu uma solidão terrível.

— Ei! — gritou.

— Oook?

— O que eu faço agora?

— Oook?

Coin agitou os braços, em desespero.

— Talvez eu pudesse fazer alguma coisa — sugeriu, com uma voz que beirava o pânico. — Você não acha que seria boa idéia? Quer dizer, eu poderia ajudar as pessoas. Você, com certeza, gostaria de voltar a ser gente, não gostaria?

O eterno sorriso do bibliotecário ergueu-se o suficiente para revelar os dentes.

— Tudo bem, talvez não — apressou-se em dizer Coin. — Mas tem outras coisas que eu poderia fazer, não tem?

O bibliotecário encarou-o durante algum tempo, então voltou os olhos para a mão do menino. Cheio de culpa, Coin se sobressaltou e abriu os dedos.

O macaco pegou a pequena bola prateada pouco antes de ela atingir o chão e suspendeu-a a altura do olho. Cheirou-a, balançou-a de leve e colocou-a junto ao ouvido.

Depois levantou o braço e atirou-a o mais longe possível.

— O que… — começou Coin, e caiu estirado na neve quando o bibliotecário o empurrou e se jogou sobre ele.

A bolinha girou no ar e tombou no chão. Houve um ruído de corda de harpa se partindo, um breve murmúrio de vozes incompreensíveis, um sopro de vento quente, e os deuses do Disco estavam livres.

Também estavam muito irritados.

— Não tem nada que a gente possa fazer? — perguntou Creosoto.

— Não — respondeu Conina.

— O gelo vai vencer? — perguntou Creosoto.

— Vai — respondeu Conina.

— Não — esbravejou Nijel.

Ele tremia de raiva, ou talvez de frio, e estava quase tão branco quanto as geleiras que passavam trovejando abaixo deles. Conina suspirou.

— Como você acha… — começou ela.

— Ponham-me lá embaixo, alguns minutos à frente deles — exigiu Nijel.

— Não sei como isso ajudaria.

— Não pedi sua opinião — rebateu Nijel, em voz baixa. — Só façam o que eu disse. Ponham-me lá embaixo, um pouco à frente deles, para eu ter tempo de me preparar.

— De se preparar para quê?

Nijel não respondeu.

— Eu perguntei — irritou-se Conina — de se preparar…

— Quieta!

— Não sei por que…

— Olhe aqui — disse Nijel, com a paciência que fica a um passo do assassinato a machadadas. — O gelo vai cobrir o Disco inteiro, certo? Todos vão morrer, não é? Menos a gente, durante algum tempo, até esses cavalos quererem comer, usar o banheiro ou o que for, o que não nos vale de muita coisa, a não ser pelo fato de que Creosoto talvez tenha tempo de escrever um soneto sobre como ficou frio de repente e como a espécie humana está prestes a acabar, e, nessas circunstâncias, eu gostaria de deixar bem claro que não vou tolerar objeções, ficou entendido?

Ele parou para tomar fôlego, tremendo feito corda de harpa.

Conina hesitou. Abriu e fechou a boca algumas vezes, considerando objetar. Pensou melhor.

Eles encontraram uma pequena clareira numa floresta de pinheiros, dois ou três quilômetros à frente do rebanho, embora fosse nítido o barulho das geleiras e houvesse vapor sobre as árvores, sem dizer que o chão tremia como pele de tambor.

Nijel avançou para o centro da clareira e treinou alguns golpes com a espada. Os outros o observavam, pensativos.

— Se você não se importa — sussurrou Creosoto para Conina —, eu vou embora. E nessas horas que a lucidez perde seus atrativos, e tenho certeza de que o fim do mundo vai parecer melhor depois de umas bebidas. Você acredita no Paraíso, ó flor das faces de pêssego?

— Não.

— Ah — lamentou Creosoto. — Bem, nesse caso, provavelmente não vamos nos ver mais. — Ele suspirou. — Que pena! Tudo isso por causa do tal múnus. Hum. É claro que, se por acaso…