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— Oook?

— Não consigo evitar! É fácil demais mudar tudo! — Ele pôs as mãos na cabeça. — Só tenho de pensar em alguma coisa! Não posso ficar, tudo em que eu toco dá errado, é como tentar dormir sobre um monte de ovos! Esse mundo é delicado demais! Por favor, me diga o que fazer!

O bibliotecário sentou-se e girou o corpo algumas vezes, sinal evidente de pensamento profundo.

Não se sabe exatamente o que ele disse, mas Coin sorriu, assentiu e apertou a mão do bibliotecário. Depois, abriu as próprias mãos, agitou-as no ar e entrou em outro mundo. Havia um lago e montanhas distantes, e alguns faisões o observavam, desconfiados, debaixo das árvores. Era a magia que todos os fonticeiros acabavam aprendendo.

Os fonticeiros nunca se tornavam parte do mundo. Apenas usavam-no durante algum tempo.

Da metade do gramado, ele olhou para trás e acenou para o bibliotecário. O macaco fez que sim com a cabeça, à guisa de incentivo.

Então a bolha encolheu, e o ultimo fonticeiro partiu deste para um mundo próprio.

Embora não tenha muito a ver com a história, é interessante notar que, a cerca de oitocentos quilômetros dali, um pequeno bando, ou, nesse caso, rebanho, de aves viesse abrindo caminho entre as árvores. Elas tinham cabeça de flamingo, corpo de peru e perna de lutador de sumo. Andavam de maneira espasmódica e bamboleante, como se a cabeça fosse presa aos pés por fitas elásticas. Pertenciam a uma espécie singular mesmo para a fauna do Disco, já que seu principal meio de defesa era fazer o predador rir tanto que conseguiam fugir antes de ele se recuperar.

Rincewind teria ficado ligeiramente satisfeito em saber que se chamavam múnus.

O movimento estava fraco na Tambor Remendado. O troll acorrentado ao batente da porta sentou-se à sombra e tirou alguém dos dentes.

Creosoto cantava baixinho para si mesmo. Ele havia descoberto a cerveja e não estava tendo de pagar pela bebida, porque a moeda forte dos elogios — raramente empregada pelos namorados de Ankh — vinha surtindo um efeito inacreditável na filha do proprietário. Era uma menina grandona, afável, com o corpo da mesma cor e — falando sem rodeios — da mesma forma de um pão cru. Ela estava intrigada. Ninguém jamais dissera que seus seios pareciam melões adornados de jóias.

— Com certeza — disse o xerinfe, escorregando do banco. — Sem dúvida.

Fossem os grandes, amarelos, ou os pequenos verdes com pele rugosa, pensou ele.

— E o que você falou dos meus cabelos? — perguntou ela, trazendo-o de volta ao banco e enchendo o copo.

— Ah — o xerinfe franziu a testa. — São como um rebanho de cabras a pastar nas colinas de Monte Não Sei Quê, sem dúvida alguma. Quanto às suas orelhas — acrescentou ele, às pressas —, são conchas rosadas que adornam as areias beijadas pelo mar de…

— Como assim, um rebanho de cabras? — perguntou ela.

O xerinfe hesitou. Sempre achara aquele um de seus melhores versos. Agora, pela primeira vez, ele se deparava com o famoso caráter prático de Ankh-Morpork. Por incrível que pareça, ficou impressionado.

— Quer dizer, em tamanho, forma ou cheiro? — insistiu a menina.

— Eu acho — respondeu o xerinfe — que a frase que eu tinha em mente era exatamente não são como um rebanho de cabras.

— Ah.

A garota puxou o garrafão para si.

— E acho que aceitaria outro copo — acrescentou ele, de maneira indistinta. — E então… e então… — olhou de esguelha para a garota e decidiu correr o risco. — Você é boa contadora de histórias?

— O quê?

Ele lambeu os lábios, subitamente secos.

— Conhece muitas histórias? — murmurou.

— Ah, conheço. Pencas.

— Pencas? — gemeu Creosoto.

A maioria das concubinas só sabia uma ou duas.

— Centenas. Por que, você quer ouvir uma?

— Agora?

— Se quiser. Não tem muito movimento.

Talvez eu tenha morrido, pensou Creosoto. Talvez isso seja o Paraíso. Ele segurou as mãos dela.

— Sabe — disse —, faz muito tempo que não ouço uma boa narrativa. Mas não quero que você faça nada que não queira.

Ela afagou o braço dele. Que cavalheiro, pensou. Comparado a alguns daqui.

— Tem uma que minha avó costumava contar. Sei até de trás prá frente — disse.

Com calor, Creosoto bebericou a cerveja e encarou a parede. Centenas, pensou ele. E ainda sabe algumas de trás pra frente.

A menina pigarreou e, numa voz cadenciada, que fazia os batimentos cardíacos de Creosoto dispararem, começou:

— Houve um homem, e ele teve oito filhos…

O Patrício estava sentado à janela, escrevendo. As lembranças das duas últimas semanas eram um tanto difusas, e ele não gostava nada disso.

Um empregado havia acendido uma lamparina para dissipar o crepúsculo, e algumas mariposas voavam em torno dela. O Patrício as observava com atenção. Por algum motivo, sentia-se pouco à vontade perto de vidro, mas, ao olhar fixamente para os insetos, notou que não era isso o que o incomodava.

O que o incomodava era o fato de estar contendo uma ânsia terrível de pegá-los com a língua.

Deitado aos pés do dono, Wuffles latia em seus sonhos.

As luzes acendiam-se por toda a cidade, mas os últimos raios do ocaso ainda iluminaram as gárgulas, que ajudavam umas às outras na longa escalada até o telhado.

O bibliotecário observou-as da porta aberta, enquanto se cocava, pensativo. Deu meia-volta e fechou a porta para a noite.

Fazia calor na biblioteca. Sempre fazia calor na biblioteca, porque a magia dispersa que produzia aquele brilho também esquentava o ambiente.

O bibliotecário olhou com satisfação para os livros, fez as últimas rondas dos corredores adormecidos, arrastou o cobertor para debaixo da escrivaninha, comeu a última banana do dia e caiu no sono.

Aos poucos, o silêncio apoderou-se da biblioteca. O silêncio avançou por entre os restos de um chapéu bastante amassado, queimado e gasto, que fora pendurado com certa pompa na parede. Por mais longe que o mago vá, sempre volta para pegar o seu chapéu.

O silêncio tomou conta da Universidade da mesma maneira como o ar toma conta de um buraco. A noite espalhou-se pelo Disco como geléia de ameixa, ou talvez de amora-preta.

Mas chegaria a manhã. Sempre havia outra manhã…