Выбрать главу

O tesoureiro mirou as faces preocupadas e pensou: jantares demais. Muitas tardes esperando a criadagem levar o chá. Tempo demais gasto em quartos abafados, lendo livros antigos escritos por homens mortos. Brocados de ouro e cerimônias demais. Gordura demais. A Universidade inteira é como um fruto maduro, pronto para um bom puxão…

Ou um bom empurrão…

— Eu me pergunto se realmente temos um problema — disse ele.

Gravie Derment, um dos Sábios da Sombra Desconhecida, esmurrou a mesa.

— Cruz-credo, homem dos deuses! — gritou. — Um menino aparece no meio da noite, derruba dois dos nossos melhores homens, senta na cadeira do arqui-reitor, e você se pergunta se temos um problema? O garoto tem talento! Pelo que vimos hoje à noite, não existe mago no Disco que possa enfrentá-lo!

— E por que temos de enfrentá-lo? — insistiu Lingote, num tom de voz lúcido.

— Porque é mais poderoso do que nós!

— E…?

A voz de Lingote faria folha de vidro parecer campo arado, faria mel parecer pedra.

— E evidente… — Gravie hesitou. Lingote abriu um sorriso, à guisa de incentivo.

— Aham.

Quem chamava era Marmaric Carding, chefe da Irmandade do Logro. Levantou os dedos cheios de anéis e encarou Lingote por cima deles. O tesoureiro o detestava. Desconfiava imensamente da inteligência do homem. Suspeitava que poderia ser muito grande e que, por trás daquelas bochechas cobertas de veias, havia uma mente cheia de pequenas rodas lustradas girando ensandecidas.

— Ele não parece disposto a usar esse poder — considerou Carding.

— E quanto a Billias e Virrid?

— Birra de criança.

Os outros magos alternavam o olhar entre ele e o tesoureiro. Tinham a sensação de que alguma coisa estava acontecendo, mas não conseguiam entender exatamente o quê.

O motivo de os magos não governarem o Disco era bem simples. Se entregássemos um pedaço de corda a dois magos, eles puxariam em direções opostas. Algo em sua genética ou em sua formação lhes conferia uma postura, em relação à cooperação mútua, que fazia um velho elefante com dor de dente terminal parecer formiguinha trabalhadeira.

Lingote abriu os braços.

— Irmãos — disse, mais uma vez, — não vêem o que está acontecendo? Temos aqui um jovem habilidoso, talvez criado no isolamento dos campos, hum, incultos, que, sentindo a antiga chamada da magia no corpo, viajou por estradas tortuosas, passando por sabe-se lá que perigos e, por fim, atingiu o destino da viagem, sozinho e amedrontado, querendo de nós, seus mestres, apenas disciplina para ajustar e guiar seus talentos. Quem somos nós para jogá-lo ao, hum, relento invernal, negando…

O discurso foi interrompido por Gravie, que assoava o nariz:

— Não é inverno — rebateu o mago. — A noite está bem quente.

— Ao clima traiçoeiro e inconstante da primavera — grunhiu Lingote. — E maldito seria o homem que não cedesse, hum, nessa época…

— É quase verão — Carding, pensativo, coçou o nariz. — O menino tem uma vara — observou. — Quem a deu a ele? Você perguntou?

— Não — respondeu Lingote, ainda olhando furiosamente para o interruptivo defensor do calendário.

Carding começou a olhar para as unhas, o que Lingote considerou um trejeito sugestivo.

— Bem, qualquer que seja o problema, tenho certeza de que pode esperar até amanhã — disse, numa voz que Lingote considerou ofensivamente entediada.

— Minha nossa, ele deu sumiço em Billias! — exclamou Gravie.

E dizem que não tem nada além de fuligem no quarto de Virrid!

— Talvez os dois tenham sido um pouco insensatos — argumentou Carding, com tranqüilidade. — Meu bom irmão, estou certo de que você não seria derrotado nos assuntos da Arte por um simples garoto.

— Bem, qualquer que seja o problema, tenho certeza de que pode esperar até amanhã — disse, numa voz que Lingote considerou ostensivamente entediada.

— Minha nossa, ele deu sumiço em Billias! — exclamou Gravie.

— E dizem que não tem nada além de fuligem no quarto de Virrid!

Gravie hesitou.

— Bem, hã — disse. — Não. Claro que não. — Olhou o sorriso inocente de Carding e tossiu alto: — Certamente não. Billias foi muito insensato. Mas, com certeza, um pouco de cautela…

— Então sejamos cautelosos amanhã de manhã — decretou Carding, animado. — Irmãos, suspendamos a reunião. O menino está dormindo e, pelo menos nisso, deve nos servir de exemplo. Tudo vai parecer melhor à luz do dia.

— Já vi coisas que não pareciam — advertiu, com voz sombria, Gravie, que não confiava na juventude. Achava que isso jamais trazia algo de bom.

Os magos seniores voltaram ao salão principal, onde o jantar havia chegado ao nono prato e estava começando a entrar no ritmo. E preciso mais que um pouco de magia e alguém virando fumaça para tirar o apetite de um mago.

Por algum motivo inexplicável, Lingote e Carding foram os últimos a sair. Permaneceram sentados nas duas extremidades da mesa, olhando um para o outro, como gatos. Gatos podem ficar nas extremidades de uma rua e olhar um para o outro por horas a fio, realizando um tipo de manobra mental que faria um mestre no jogo de xadrez parecer impulsivo. Mas os gatos não chegam nem perto dos magos. Os dois só se sentiam prontos para avançar depois de imaginarem todo o diálogo seguinte e saberem se permitiria uma nova jogada.

Lingote cedeu primeiro:

— Todos os magos são irmãos — disse. — Devemos confiar uns nos outros. Tenho informações.

— Eu sei — afirmou Carding. — Você sabe quem é o menino.

Os lábios de Lingote mexeram-se em silêncio enquanto ele tentava prever o trecho seguinte da conversa.

— Você não pode ter certeza disso — arriscou, afinal.

— Meu caro Lingote, você cora quando inadvertidamente fala a verdade.

— Eu não corei!

— Exatamente — concluiu Carding. — É o que estou querendo dizer.

— Tudo bem — admitiu Lingote. — Mas você sabe alguma outra coisa.

O mago gordo encolheu os ombros.

— Um simples palpite — alegou. — Mas por que eu deveria me aliar — ele enrolou a língua na palavra pouco familiar — a você, um mero mago de quinto grau? Seria mais correto se eu obtivesse as informações derretendo o seu cérebro. Entenda, não estou querendo ofender, só gostaria de saber.

Os acontecimentos dos instantes seguintes ocorreram rápido demais para se deixarem compreender por quem não é mago, mas foram mais ou menos assim:

Lingote vinha desenhando os signos do Acelerador de Megrim no ar, debaixo da mesa. Ele murmurou as sílabas e atirou o feitiço ao longo da mesa, onde deixou um rastro de fumaça no verniz e, na metade do caminho, deparou-se com as cobras prateadas do Poderoso Áspide-Spray de Irmão Mestrecalado, que saíram dos dedos de Carding.

Os dois feitiços se engalfinharam, viraram uma bola de fogo verde e explodiram, enchendo o gabinete de cristais amarelos.

Os magos trocaram aquele tipo de olhar arrastado em que se poderiam assar amendoins.

De repente, Carding estava surpreso. Não deveria estar. Magos de oitavo nível raramente se vêem diante de desafios de habilidade mágica. Em tese, existiam apenas sete outros magos de igual poder, e todo mago inferior seria, por definição… bem, inferior. Isso os deixa servis. Mas Lingote, por sua vez, estava no quinto nível. Pode ser duro estar no topo, e provavelmente é ainda mais duro lá embaixo, mas o meio do caminho é tão duro que dá para usá-lo como ferradura. A essa altura, todos os desiludidos, preguiçosos, idiotas e azarados já foram eliminados, a área está limpa e os magos encontram-se sozinhos, cercados de inimigos mortais por todos os lados. Abaixo, existem os hostis do nível quatro, esperando para lhe passarem a perna. Acima, há os arrogantes do sexto grau, ansiosos por esmagar qualquer ambição possível. E, evidentemente, à volta estão os colegas de nível cinco, prontos para a primeira oportunidade de diminuir um pouco a competição. E não há brecha. Os magos de quinto nível são cruéis e inflexíveis, têm reflexos de aço, e os olhos são estreitos por estarem sempre fitando aquele quilômetro metafórico ao fim do qual fica o prêmio dos prêmios: o chapéu de arqui-reitor.