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A idéia de cooperação começou a exercer algum fascínio sobre Carding. Havia poder verdadeiro ali, que poderia ser útil até quando se fizesse necessário. Depois, é claro, ele talvez tivesse de ser… desencorajado…

Lingote pensou: pistolão. Já havia escutado o termo, embora jamais dentro da Universidade, e sabia que significava conseguir que aqueles que estão acima nos dêem uma mãozinha. Normalmente, nenhum mago jamais sonharia em dar uma mãozinha a um colega, a menos que fosse para esbofeteá-lo. A mera idéia de incentivar um adversário… Por outro lado, aquele velho idiota talvez pudesse ser de valia durante algum tempo, e depois, bem…

Eles se entreolharam com rancorosa admiração mútua e desconfiança ilimitada, mas, pelo menos, era uma desconfiança com a qual ambos sentiam que podiam contar. Até depois.

— O nome dele é Coin — confidenciou Lingote. — Disse que o pai se chamava Ipslore.

— Fico imaginando quantos irmãos ele tem — disse Carding.

— O quê?

— Há séculos não existe mágica assim na Universidade — considerou Carding. — Há milhares de anos. Eu mesmo só li a respeito.

— Expulsamos um Ipslore trinta anos atrás — observou Lingote.

— De acordo com os registros, ele havia se casado. Se teve filhos, todos seriam magos, mas não consigo entender como…

— Aquilo não era magia de mago. Era fonticeria — advertiu Carding, recostando-se na cadeira.

Lingote encarou-o por sobre o verniz borbulhante da mesa.

— Fonticeria?

— O oitavo filho de um mago torna-se um fonticeiro.

— Eu não sabia!

— Não é muito divulgado.

— Tudo bem, mas… os fonticeiros viveram muito tempo atrás. Quer dizer, a magia era muito mais forte naquela época, hum, o homem era diferente… não tinha nada a ver com procriação —

Lingote estava pensando: ter oito filhos significa que ele fez aquilo oito vezes. Pelo menos. Nossa! — Os fonticeiros podiam tudo — continuou. — Eram quase tão poderosos quanto os deuses. Hum.

Não havia fim para os problemas. Os deuses não permitiriam mais esse tipo de coisa, confiar nisso.

— Bem, havia problemas porque os fonticeiros brigavam entre si — explicou Carding. — Mas um fonticeiro só não seria problema. Isto é, um fonticeiro bem-assessorado. Por magos mais velhos e inteligentes.

— Mas ele quer o chapéu de arqui-reitor!

— Por que não?

Lingote ficou boquiaberto. Aquilo já era demais, até para ele. Carding sorriu, cordial.

— Mas o chapéu…

— É só um símbolo — disse Carding. — Nada de especial. Se ele quer, pode ter. É besteira. Um símbolo, nada mais. Um chapéu-de-ferro.

— Chapéu-de-ferro?

— Usado por um testa-de-ferro.

— Mas os deuses escolhem o arqui-reitor!

Carding ergueu uma sobrancelha.

— Escolhem? — perguntou, e tossiu.

— Bem, escolhem. Imagino que sim. Em certo sentido.

— Em certo sentido?

Carding levantou-se e ajeitou o manto.

— Eu acho — disse — que você ainda tem muito que aprender. Aliás, onde está o chapéu?

— Não sei — respondeu Lingote, ainda um tanto perturbado. — Por aí, hum, nos aposentos de Virrid.

— É melhor pegá-lo — sugeriu Carding.

Ele se deteve à porta e alisou a barba, pensativo.

— Lembro-me bem de Ipslore — comentou. — Fomos colegas nas aulas. Sujeito impossível. Hábitos estranhos. Um mago excelente, é claro, até ir para o mau caminho. Tinha um jeito engraçado de mexer a sobrancelha quando ficava animado — Carding regrediu quarenta anos na memória e estremeceu. — O chapéu — lembrou, então. — Vamos procurá-lo. Seria terrível se algo lhe acontecesse.

Na verdade, o chapéu não tinha a menor intenção de deixar que algo lhe acontecesse e, naquele momento, corria em direção à Tambor Remendado, sob o braço do desorientado ladrão vestido de preto.

O ladrão, como logo ficará claro, era um tipo especial de ladrão. Um artista do roubo. Outros ladrões apenas roubavam tudo que não estivesse pregado. Esse ladrão, no entanto, roubava também os pregos. Ele havia escandalizado Ankh por nutrir particular interesse em roubar, com assombroso sucesso, objetos que não só se encontravam pregados, mas também vigiados por guardas atentos, em casas-fortes inacessíveis. Existem artistas que pintam o teto inteiro de uma capela. Esse era o tipo de ladrão que poderia roubá-lo.

A esse ladrão, em especial, atribuíam o roubo da preciosa faca estripadora do Templo de Offler, o Deus Crocodilo, em plena oração vespertina, e das ferraduras de prata do melhor cavalo do Patrício, durante uma corrida. Quando Gritoller Mimpsey, superintendente do Grêmio dos Ladrões, foi empurrado no mercado e depois, ao voltar para casa, descobriu que um punhado de diamantes recém-roubados havia desaparecido de onde estava, soube a quem culpar (isso porque Gritoller havia engolido as pedras para guardá-las em lugar seguro). Esse era o tipo de ladrão que podia nos roubar a iniciativa, o momento e as palavras. Entretanto, era a primeira vez que roubava um objeto que não apenas lhe pedira isso — em voz baixa, porém autoritária —, mas também lhe dera indicações, de certo modo incontestáveis, sobre como deveria proceder.

Agora, era aquele momento crucial do dia útil ankh-morporkiano, quando quem ganha a vida debaixo do sol está descansando, depois do serviço, e quem trabalha ao luar gélido está juntando energias para começar. Na verdade, o dia havia alcançado aquele ponto em que fica tarde demais para o arrombamento de portas e cedo demais para o assalto à mão armada.

Rincewind estava sentado sozinho no bar cheio e enfumaçado. Por isso não prestou muita atenção quando uma sombra passou pela mesa, e um vulto sinistro sentou-se de frente para ele. Não havia nada de extraordinário em vultos sinistros naquele lugar. A Tambor acalentava a reputação de taverna mais infame de Ankh-Morpork, e o grande troll que agora vigiava a porta examinava os fregueses à procura de traços condizentes, como capas negras, olhos brilhantes, espadas mágicas e assim por diante. Rincewind nunca soube o que ele fazia com os indivíduos que não se encaixavam no perfil. Talvez os comesse.

Quando o vulto falou, a voz rouca surgiu das profundezas do capuz de veludo preto, forrado com pele de animal.

— Psiu! — chamou. — Estou à procura de um mago.

A voz parecia simular a rouquidão, mas, novamente, isso não era novidade na Tambor.

— Algum mago em particular? — perguntou Rincewind, com cautela. Qualquer um poderia se meter em apuros, num caso desses.

— Um que guarde o sentido da tradição e não se importe em assumir riscos em troca de uma boa recompensa — disse outra voz. Ela parecia vir da caixa arredondada, de couro preto, debaixo do braço do desconhecido.

— Ah — soltou Rincewind. — Isso limita um pouco as coisas. Envolve alguma viagem arriscada a terras desconhecidas e provavelmente perigosas?

— Envolve.

— Encontro com criaturas exóticas? — indagou Rincewind, sorrindo.

— Talvez.

— Morte quase certa?

— Quase certo que sim.

Rincewind balançou a cabeça e pegou o chapéu.

— Bem, eu lhe desejo sorte em sua busca — disse. — Eu mesmo poderia ajudá-lo, mas não vou.