Não conseguiu chegar à costa naquele dia. Depois de percorrerem cerca de 25 quilômetros, ele e os dois pastores pararam à sombra fresca e verde de um laranjal para comer alguma coisa e beber vinho. Fabrizzio estava tagarelando sobre como algum dia iria para a América. Depois de comer e beber, eles se refestelaram na sombra, e Fabrizzio desabotoou a camisa e contraiu os músculos do estômago para dar vida à tatuagem. O casal nu pintado no seu peito contorcia-se numa agonia amorosa e o punhal empunhado pelo marido tremia na carne transfixada dos dois amantes. Isso os divertia. Foi nesse instante que Michael foi atingido pelo que os sicilianos chamam de “o raio”.
Um pouco além do laranjal, encontravam-se os campos de listras verdes de uma propriedade baronial. No fim da estrada do laranjal, havia uma villa tão romana que parecia ter sido escavada das ruínas de Pompéia. Era um pequeno palácio com um enorme pórtico de mármore e colunas gregas estriadas, através das quais vinha um bando de moças flanqueado por duas senhoras robustas vestidas de preto. Eram da aldeia e obviamente tinham cumprido o seu antigo dever ao barão local limpando-lhe a vila e preparando-a para a temporada de inverno do proprietário. Agora elas iam aos campos colher as flores com as quais encheriam as salas e quartos da villa. Estavam colhendo a sulla cor-de-rosa, a glicínia roxa, misturando-as com florescências de limão e laranja. As moças, não vendo os homens descansando no laranjal, foram-se aproximando cada vez mais
Usavam vestidos baratos de desenhos alegres colados ao corpo. Eram ainda adolescentes, mas com a sua carne suada, de plena feminilidade, amadurecendo rapidamente. Três ou quatro delas começaram a perseguir uma companheira, fazendo-a correr na direção do laranjal. A garota perseguida segurava um cacho de enormes uvas roxas na mão esquerda e com a direita arrancava uvas do cacho e atirava-as nas suas perseguidoras. Tinha uma coroa de cabelos cacheados tão escuros como as uvas que segurava, e seu corpo parecia irromper de sua pele.
Já perto do laranjal ela se equilibrou, espantada, quando os seus olhos divisaram a cor estranha das camisas dos homens. Permaneceu ali na ponta dos pés, equilibrada como um veado pronto para correr. Agora ela estava bem perto, tão perto que os homens puderam ver todos os traços do seu rosto.
Ela era toda oval — olhos ovais, ossos do rosto ovais, o contorno de sua sobrancelha também oval. A sua pele era de uma esquisita cor creme-escura e os seus olhos, enormes, cor violeta ou castanhos-escuros, com pestanas compridas e cerradas sombreando o seu rosto encantador. A sua boca era fascinante sem ser grossa, meiga sem ser fraca e estava manchada de vermelho-escuro com o suco das uvas. Ela era tão incrivelmente encantadora que Fabriz zio murmurou: “Jesus Crísto, leve a minha alma, estou morrendo”, de brincadeira, mas as palavras saíram um pouco altas. Quando o ouviu, a garota saiu da posição de equilíbrio na ponta dos pés, rodopiou rapidamente e voltou correndo na direção de suas perseguidoras. Suas ancas moviam-se como as de um animal por baixo do pano apertado de seu vestido; de modo bem pagão e inocentemente voluptuoso. Quando chegou junto das amigas, ela rodopiou novamente e o seu rosto era como que uma depressão escura no campo de flores cintilantes. Ela estendeu o braço, a mão cheia de uvas apontando na direção do laranjal. As garotas fugiram gargalhando, com as senhoras robustas, vestidas de preto, repreendendo-as.
Quanto a Michael Corleone, ele se viu de repente em pé, com o coração batendo-lhe no peito; sentiu uma pequena tonteira. O sangue circulava aceleradamente através de seu corpo, através de todas as suas extremidades, e se chocava nas pontas dos dedos das mãos e dos pés. Todos os perfumes da ilha vieram precipitadamente com o vento, das florescências de limão e laranja, das uvas, das flores. Parecia que o seu próprio corpo tinha saltado para fora dele mesmo. E então ele ouviu os dois pastores rirem.
— Você foi atingido pelo raio, hem? — perguntou Fabrizzio, batendo- lhe no ombro.
Até Calo se mostrou amável, tocando-lhe no braço e dizendo carinhosamente:
— Calma, homem, calma.
Era como se Michael tivesse sido atropelado por um carro. Fabrizzio passou-lhe uma garrafa de vinho e Michael bebeu um longo trago. Isso clareou-lhe a cabeça.
— Que diabo vocês, seus malditos apaixonados de ovelhas, estão dizendo? — perguntou ele.
Os dois pastores riram. Calo, com seu rosto honesto denotando a maior seriedade, respondeu:
— Você não pode esconder o raio. Quando ele atinge uma pessoa, todo mundo vê. Por Deus, homem, não se envergonhe disso, alguns homens rezam pelo raio. Você é um sujeito de sorte.
Michael não gostou muito de ter as suas emoções lidas com tamanha facilidade. Mas era a primeira vez na vida que tal coisa lhe acontecia. Não era nada semelhante a suas paixões de adolescente, nada semelhante ao amor que tinha por Kay, um amor baseado na meiguice e inteligência dela, na polaridade do louro e moreno. Isso era um desejo esmagador de posse, era uma impressão indelével do rosto da garota no seu cérebro e ele sabia que ela lhe perseguiria a memória cada dia de sua vida se ele não a possuísse. A sua vida se simplificara, se focalizara num ponto, tudo o mais não merecia nem sequer um momento de atenção. Durante o seu exílio, ele sempre pensara em Kay, embora sentisse que jamais poderiam amar-se novamente ou pelo menos ser amigos. Ele era, afinal de contas, um assassino, um mafioso que cometera o seu crime. Mas agora Kay estava completamente eliminada de sua consciência.
Fabrizzio disse espertamente:
— Vou até a aldeia, a gente vai descobrir quem é ela. Quem sabe, talvez ela seja mais fácil do que a gente pensa. Só há uma cura para o raio, hem, Caio?
O outro pastor acenou com a cabeça seriamente. Michael nada disse. Seguiu os dois homens quando eles começaram a descer a estrada para a aldeia próxima na qual o bando de garotas desaparecera.
A aldeia se agrupava em torno da usual praça central com sua fonte. Mas ficava numa estrada principal, de modo que havia ali algumas lojas, casas de vinho e um pequeno café com três mesas do lado de fora num pequeno terraço. Os pastores sentaram-se numa das mesas e Michael reuniu-se a eles. Não havia o menor vestígio das garotas. A aldeia parecia deserta, havia, apenas, à vista uns meninos e um burro que vagava por perto.
O proprietário do café veio atendê-los. Era um homem baixo, troncudo, quase um anão, mas o recebeu alegremente e pós um prato de grão-de-bico na mesa deles.
— Vocês são estranhos aqui disse ele — portanto quero aconselhar vocês. Provem meu vinho. As uvas vêm da minha própria fazenda e é feito pelos meus próprios filhos. Eles o misturam com laranjas e limão. É o melhor vinho da Itália.
Deixaram-no trazer o vinho numa jarra e era até melhor do que ele dizia, roxo-escuro e forte como conhaque. Fabrizzio disse ao proprietário do café:
— Você conhece todas as moças aqui, garanto. A gente viu algumas garotas bonitas descendo a estrada, sendo que uma delas fez o nosso amigo aqui ser atingido pelo raio.
Fabrizzio apontou para Michael.
O dono do café olhou para Michael com novo interesse. A cara quebrada lhe parecera muito comum antes, não valendo uma segunda olhada. Mas um homem atingido pelo raio era outra coisa.
— É melhor você levar algumas garrafas para casa, meu amigo — disse ele. — Você vai precisar de ajuda para pegar no sono esta noite.