Uma vez aí, contemplou o vulto deitado no catre.
Seis semanas antes, Jamie McGregor recuperara o conhecimento e vira-se estendido num catre desconhecido. As recordações foram reaparecendo gradualmente: o Karroo, o corpo estropiado, os abutres…
De súbito, Banda entrou no quarto e Jamie compreendeu que tencionava matá-lo.
Van der Merwe inteirara-se de que escapara com vida à agressão e enviara o criado para lhe aplicar o golpe de misericórdia.
- Porque não veio o teu dono pessoalmente? - articulou em voz rouca.
- Não tenho dono.
- Van der Merwe. Não foi ele quem te enviou?
- Não. Matava a ambos, se soubesse.
- Onde estou? - a situação parecia insensata a Jamie. - Quero saber onde estou.
- Na Cidade do Cabo.
- O quê?! Como vim cá parar?
- Trouxe-o eu.
Fixou os olhos negros por um momento, antes de inquirir:
- Porquê?
- Preciso de si. Quero vingar-me.
- Mas que?…
- Não é por mim - e Banda acercou-se uns passos, e continuando a meia voz: - Na verdade, Van der Merwe violou minha irmã. Ela morreu no momento do parto e tinha apenas onze anos.
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- Santo Deus! - balbuciou Jamie, horrorizado.
- Desde o dia da sua morte que procuro um branco para me ajudar. Encontrei-o naquele velho celeiro, na noite em que participei no seu espancamento, Mister McGregor. Levámo-lo para o Karroo e recebi instruções para o matar. Comuniquei aos outros que estava morto e fui buscá-lo assim que pude. Ia chegando demasiado tarde.
Jamie não conseguiu evitar um estremecimento de terror ao recordar-se das sinistras aves de rapina esvoaçando à sua volta.
- Quando apareci, os abutres preparavam -se para o devorar. Levei-o para a galera e escondi-o na cabana dos meus familiares. Um dos nossos médicos ligou-lhe o tronco por causa das vértebras fracturadas, cuidou da perna e dos outros ferimentos.
- E depois?
- Uma carruagem de familiares meus ia partir para a Cidade do Cabo e pedi-lhes que nos levassem. Delirou durante quase todo o caminho. Cada vez que adormecia, eu receava que não tornasse a acordar.
Jamie contemplou o homem que quase o assassinara. Necessitava de reflectir.
Não confiava nele… apesar de lhe ter salvo a vida, Banda pretendia ati ngir Van der Merwe por seu intermédio. “Isso pode resultar vantajoso para mais de uma pessoa”, decidiu. Mais do que tudo o resto no mundo, Jamie desejava que o holandês expiasse o roubo que cometera.
- Muito bem - assentiu por fim. - Descobrirei uma maneira de obrigar Van der Merwe a arrepender-se do que nos fez.
- Vai morrer? - Banda deixou transparecer uma sugestão de sorriso pela primeira vez.
- Não - replicou Jamie, entre dentes. - Vou viver.
Lenvantou-se da cama pela primeira vez naquela tarde, aturdido e fraco. A perna ainda não sarara por completo e movia-se coxeando um pouco. Quando Banda tentou ajudá-lo, repeliu-o.
- Larga-me. Tenho de me habituar a singrar pelos meus próprios meios - e enquanto o negro o observava atentamente, cruzou o quarto com lentidão e pediu:
- Arranja-me um espelho.
Banda comprazeu-o e Jamie ergueu-o à altura do rosto.
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Deparou-se-lhe um desconhecido. Os cabelos tinham-se tornado brancos como a neve e exibia uma barba irregular da mesma cor. O nariz fora fracturado e a cartilagem atingida torcera-o. Por seu turno, o semblante envelhecera vinte anos.
Havia sulcos profundos nas faces encovadas e uma cicatriz lívida atravessava-lhe o queixo lateralmente. No entanto, a maior alteração situava-se nos olhos. Era um olhar que presenciara demasiada dor e sentira os seus efeitos. Por fim, com um suspiro, pousou o espelho.
- Vou dar uma volta - anunciou num murmúrio.
- Lamento, Mister McGregor, mas não é possível.
- Porquê?
- Os brancos não costumam visitar esta zona da cidade, assim como os pretos nunca vão aos lugares que eles frequentam. Os vizinhos não sabem que se encontra aqui, pois trouxemo-lo de noite.
- Então, como posso sair?
- Trataremos disso esta noite.
Jamie começou a aperceber-se pela primeira vez do risco a que Banda se expusera por ele e, embaraçado, disse:
- Não tenho dinheiro. Preciso de me empregar.
- Arranjarei trabalho na estiva. Estão sempre a admitir homens - declarou o negro puxando de algumas moedas da algibeira. - Tome.
- Hei-de pagar-te - prometeu Jamie, aceitando-as.
- Pagará vingando minha irmã.
Era meia-noite quando Banda conduziu Jamie para fora da cabana. Este olhou em volta e viu que se encontrava no meio de um aglomerado de barracas e choças rudimentares. O solo, lamacento em virtude de uma chuvada recente, exalava um odor desagradável, e Jamie perguntou-se como pessoas tão altivas como Banda conseguiam passar a vida em semelhante ambiente.
- Não haverá?… - começou.
- Esteja calado - recomendou o companheiro, a meia voz. - A vizinhança é muito desconfiada.
Encontravam-se na orla da aldeia, quando Banda estendeu o braço e apontou, dizendo:
- O centro da cidade fica para aquele lado. Voltaremos a ver-nos nas docas.
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Jamie dirigiu-se à pensão em que se instalara quando chegara de Inglaterra e avistou Mrs. Venster na recepção.
- Queria um quarto - anunciou ele.
- Perfeitamente - declarou ela sorrindo e expondo o dente de ouro. - Sou Mistress Venster.
- Eu sei.
- Como? - estranhou. - Falou com alguém que tivesse estado cá?
- Não se recorda de mim? Fui seu hóspede, o ano passado.
A mulher examinou o rosto sulcado de rugas, o nariz torcido e a barba branca e meneou a cabeça.
- Nunca esqueço uma cara, meu amigo, e tenho a certeza de que vejo a sua pela primeira vez. Mas isso não significa que não possamos dar-nos bem. Os amigos tratam-me por “Dee-Dee”. Como se chama?
E Jamie ouviu a sua voz responder:
- Travis, lan Travis.
Na manhã seguinte foi procurar trabalho nas docas e o capataz observou:
- Precisamos de costas resistentes e receio que você seja muito velho para este género de trabalho.
- Mas tenho só dezanove… - Jamie interrompeu-se ao recordar-se do rosto que vira no espelho. - Deixe-me experimentar - propôs.
Foi admitido com o salário de nove xelins diários, para a carga e descarga dos navios que entrassem no porto. Pouco depois, inteirou-se de que Banda e os outros homens de cor recebiam seis.
Na primeira oportunidade que se lhe deparou, levou o negro para um canto isolado e disse:
- Temos de conversar.
- Aqui não, Mister McGregor. Há um armazém abandonado na extremidade das docas. Encontramo-nos lá, quando terminarmos o trabalho.
Banda já o aguardava, quando Jamie se apresentou no local indicado, e este pediu:
- Fala-me de Salomon van der Merwe.
- Que quer saber?
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- Tudo.
- Veio directamente da Holanda e, segundo o que me constou, a mulher morreu pouco depois e ele utilizou o dinheiro que ela possuía para se estabelecer em Klipdrift, onde enriqueceu à custa de chicanas sobre os pesquisadores.
- Do género daquela de que fui vítima?
- Isso não passa de uma das suas facetas. Os pesquisadores que têm sorte procuram-no para obterem um empréstimo destinado a explorar a mina e, antes que consigam descobrir a verdade, já passou tudo para as mãos dele.