estudou o mecanismo de tiro; tratava-se afinal de uma
arma de fabrico israelita, que não estava habituada a
usar. Como era polícia, depressa percebeu o que devia
fazer e ergueu-a; no fim de contas, os princípios eram
universais. Reprimindo com dificuldade a expectativa de
pôr fim àquela situação insustentável, Tomás esperou
que ela apontasse a pistola a Grossman, mas o que se
passou a seguir deixou-o desconcertado.
Em vez de voltar a arma contra o israelita, Valentina
desviou o cano para as pernas do prisioneiro.
“Não se mexa!”, ordenou ela ao português.
“Se tentar fazer alguma coisa, leva com uma bala nos
joelhos!”
Choque.
Ver a italiana virar-se contra ele constituiu um choque
total.
Foi nesse instante de perplexidade, arrastado numa
autêntica
montanha-russa
de
emoções,
primeiro
o
desespero absoluto, depois a alegria quase incontida,
agora a decepção completa, que Tomás tomou enfim
consciência da terrível e incrível realidade.
Valentina era o inimigo.
LXXV
A imagem de Valentina em frente dele a apontar-lhe uma
pistola
parecia
demasiado
inconcebível
para
ser
verdadeira; todavia, era isso mesmo o que naquele
instante sucedia a Tomás.
O historiador mantinha fixo nela o seu olho direito,
fitando-a e recusando-se a acreditar. Não podia ser!
Valentina não podia estar do lado dos sicarii! Isso era
absolutamente impossível! Impensável! Incompreensível!
Porém, a realidade, por mais dura e inacreditável que
parecesse, afigurava-se indesmentível. Arnie Grossman
entregara-lhe a arma e ela não a virara contra o mestre
dos sicarii, mas contra Tomás. Por mais que buscasse
explicações
e
recorresse
aos
argumentos
mais
fantasiosos
e
imaginativos
para
justificar
o
injustificável, os factos eram o que eram.
Valentina tinha a pistola nas mãos e apontara-a para
ele.
“O que se passa?”, perguntou-lhe o historiador,
tentando extrair um sentido de tudo o que vira e ouvira
nos últimos instantes.
“Porque não prende este tipo? O que está a fazer?”
De olhos semicerrados e com a arma a dançar-lhe na mão,
a italiana esboçou um sorriso malicioso, quase
provocador.
“Não
sabia
que
nós,
as
mulheres,
somos
umas
dissimuladas?”
“O quê?”
Valentina abanou a cabeça e fez um estalido desdenhoso
com a língua.
“É
mesmo
tonto!”,
exclamou
com
condescendência.
“Pensava que eu ia permitir que uma palhaçada destas
fosse até ao fim? Achava que esses olhos verdes e o
charme latino me traziam embeiçada ao ponto de ter
perdido todo o discernimento?” Voltou a abanar a
cabeça. “Ah, pobre tolo! Como são idiotas os homens!”
Arnie Grossman remexia no bolso das calças, ocupado com
qualquer coisa que escapava a Tomás.
Surpreendido com a reviravolta que se operara nos
acontecimentos, o historiador nem tentou perceber o que
ele fazia.
A sua atenção estava toda voltada para a inspectora da
Polizia Giudiziaria, que encarava com uma expressão
baralhada, como se nenhuma das palavras que ela acabara
de proferir fizesse o menor sentido. Tinha a impressão
de que não a reconhecia ou até de que nem sequer se
tratava da mesma pessoa. O mesmo corpo, embora uma
pessoa diferente.
“Mas... o que se passa? Que loucura é esta? Desde
quando é que... que...”
“Desde o princípio.”
“Como?”
Valentina desviou o olhar para o israelita, que nesse
instante afiava o que pareceu um canivete suíço.
“Eu e o Arnie já nos conhecemos há algum tempo”,
revelou. “Somos ambos polícias e temos bem a noção dos
limites da eficácia da lei. Por isso envolvemo-nos em
sociedades secretas que se destinam a resolver
problemas que pelas vias legais não têm solução. Ele
refundou em Jerusalém os sicarii, eu faço parte da área
operacional de segurança de uma loja maçónica chamada
P2, não sei se já ouviu falar...”
Tomás estava boquiaberto; aquela mulher não era
definitivamente a pessoa com quem convivera na última
semana.
“O quê?”
“P2”, repetiu ela. “Uma sigla que significa...”
“Propaganda Due”, disse o português muito devagar,
reconhecendo a designação e pronunciando o nome em
italiano.
“Sei muito bem o que é. A P2 tem ligações com o
Vaticano, andou envolvida no escândalo da lavagem de
dinheiro da máfia através do Banco Ambrosiano e consta
que não está inocente na morte do papa João Paulo I,
que se prepararia para denunciar as manigâncias da P2 e
morreu antes de o fazer.”
Valentina sorriu com esta última referência.
“Boatos”, retorquiu com um trejeito de desdém.
“Mas vejo que está familiarizado com a nossa pequena
organização.”
“A
triste
fama
da
P2
precede-a”,
devolveu
o
historiador. Olhava-a ainda com incredulidade.
“Você pertence mesmo a esse bando de malfeitores?”
Ela fez um gesto com a pistola.
“Sou eu quem tem a arma na mão, não sou?”
Tomás rendeu-se à evidência; era manifesto que dessa
vez ela dizia a verdade. Parecia-lhe incrível que
Valentina o tivesse ludibriado e manipulado todo aquele
tempo. A forma como o recrutara para a investigação,
como o conduzira pelo trilho dos enigmas plantados de
propósito para o levar a Israel e os ajudar a penetrar
no interior da Fundação Arkan, até o ataque que ele
sofrera no quarto do hotel e a compaixão que ela
mostrara... tudo não passara afinal de fingimento!
O português sacudiu a cabeça. Não havia ainda chegado a
hora adequada para rever ao pormenor toda a impostura
montada pela italiana. Primeiro precisava de obter
informações e de perceber como se atingira este ponto,
e só depois se preocuparia com o resto.
“O que faz a P2 metida nesta história?”
Valentina indicou o vulto atarefado de Grossman.
“Tudo começou quando ali o Arnie, através dos canais
apropriados, nos contactou para nos informar sobre este
projecto da Fundação Arkan.
Revelou-nos que a fundação tinha isolado células com o
ADN de Jesus e planeava fazê-lo nascer logo que a
clonagem de seres humanos fosse viável.
Inicialmente essa história pareceu-nos demasiado
fantasiosa e não acreditámos, mas depois verificámos a
informação e, para nossa grande surpresa, tudo se