Tomás despediu-se e desligou, devolvendo o telemóvel ao
bolso do pijama. Caminhava pelos corredores do
hospital, sempre a seguir a médica, que o conduzia na
direcção
do
bloco
operatório.
A
mente,
porém,
encontrava-se ainda presa às palavras da mãe e não pôde
deixar de pensar no que elas realmente significavam.
A mãe tinha fé. Mas o que era isso de ter fé?
Fazia algum sentido ter fé em Cristo quando já se
conhecia
a verdadeira
história
de
Jesus e da
transformação dos seus ensinamentos judaicos numa coisa
completamente diferente?
Tomás sempre achara que era um disparate acreditar no
que quer que fosse com dados insuficientes. Eram a
investigação e a ciência e o conhecimento que conduziam
à crença, não a repressão das dúvidas e a ignorância e
os dogmas. A crença não podia ser cega; tinha de ser
informada. Nenhuma verdade podia ser inquestionável. As
pessoas que acreditavam sem dados suficientes, pensava
ele,
não
passavam
de
simplórios
crédulos
e
supersticiosos, dispostos a acreditar na primeira
patranha que lhes contassem. A crença só era válida se
fosse baseada no saber.
No entanto, Tomás tinha noção de que havia situações em
que a crença sem dados suficientes era inevitável.
Na amizade, por exemplo. Para se ser amigo de uma
pessoa é preciso acreditar nela, crer que ela é digna
de confiança. Claro que essa fé se revela muitas vezes
infundada. Bastava ver o caso de Valentina. Ele
acreditara nela sem ter dados suficientes para o fazer
e acontecera o que acontecera. A italiana revelara-se
dúplice e quase o matara. Claro que agora estava na
prisão e ia pagar pelos crimes que havia cometido, mas
a questão não era essa; a questão era que ele
acreditara nela sem dispor de dados suficientes e dera-
-se mal. Não era isso a prova final de que a crença sem
conhecimento é perigosa?
Mas qual a alternativa? Não deveria acreditar em
ninguém até ter informação suficiente para estar certo
que essa pessoa era digna de confiança? Então como
faria amizades? Iria submeter cada amigo potencial a um
rigoroso
inquérito
prévio?
Apresentar-lhe-ia
um
questionário para preencher? Iria investigar toda a sua
história em pormenor? Isso não fazia sentido! Havia
situações na vida em que era preciso acreditar sem
informação suficiente. A informação viria depois,
claro. Mas primeiro tinha de haver crença. Crença de
que a pessoa era de confiança e podia ser sua amiga. As
informações posteriores confirmariam que essa crença
tinha fundamento. Mas o primeiro passo era sempre a
crença. Ou, para usar outra palavra, a fé. Valentina
podia ser a prova de que o processo era falível, mas
Arkan, por outro lado, trouxera a evidência de que o
método não era necessariamente errado. Não fora o
presidente da fundação, em quem aliás nunca havia
confiado, que acabara por salvá-lo?
Se era assim nas relações entre as pessoas, porque não
o poderia ser também na relação com o divino e o
sagrado?
Tomás
tinha
perfeita
consciência
da
necessidade dos homens de acreditarem em algo de
transcendente.
Jesus podia não passar de um ser humano, mas aos olhos
de quem nele acreditava, como a mãe, tornara-se um
deus.
O que havia de mal nisso, se essa crença a ajudava a
enfrentar os seus problemas e a ser uma pessoa melhor?
Não precisamos nós de fé para fazer as coisas?
Não seria cruel despir Jesus da divindade que lhe fora
atribuída?
A vida é feita de incertezas e de uma relação
permanente com o desconhecido. Quantas vezes tomamos
uma decisão sem ter...”
“Professor Noronha?”
“... toda a informação? Não é isso afinal o salto no
escuro de que é feita a nossa existência? Quantos
pequenos saltos no escuro não temos nós de dar todos os
dias? E o que...”
“Professor Noronha?!”
A interpelação interrompeu a divagação mental de Tomás,
que deambulava pelo hospital como um autómato, os olhos
colados à bata branca da doutora Koshet à maneira do
cão que segue o dono, a cabeça a vaguear pelas crenças
da mãe e a relação da sua fé com tudo o que havia
desvendado sobre a figura humana de Jesus.
“Sim?”
Foi a médica que chamou por ele.
“Chegámos ao bloco operatório”, anunciou a doutora
Koshet, indicando duas portas à direita. “O senhor
Arkan está aqui na enfermaria.”
As portas estavam juntas e abriram-se em duas, como as
dos saloons nos filmes do Faroeste. O paciente entrou
na enfermaria e viu uma maca com rodas estacionada no
meio da sala, com uma embalagem de soro no topo e um
tubo longo e estreito a descer para os lençóis. Havia
ainda dois enfermeiros sentados ao canto a conversar em
voz baixa.
Aproximou-se e deparou com o rosto macilento de Arpad
Arkan a emergir dos lençóis na maca. A face do paciente
animou-se ao ver o recém-chegado abeirar-se dele.
“Shalom!”, saudou o presidente da fundação com um
sorriso frágil.
“Folgo em vê-lo de saúde!”
“Ah, Shalom!”, respondeu Tomás, pegando-lhe na mão
fraca.
“Que palavra mais bonita! Salvou-nos a vida no último
instante, hem?”
“Não foi a palavra que nos salvou, professor Noronha.”
Tocou com o dedo na testa. “Foi o seu intelecto.”
“Nada seria possível sem a sua intervenção quando
aquele animal me estava a amputar o dedo”, retorquiu o
português, apertando com força a mão de Arkan, em jeito
de reconhecimento.
“O senhor teve uma grande coragem!”
“Nas mesmas circunstâncias, qualquer um teria feito o
mesmo.”
“Nem pense.”
O presidente da fundação soltou uma gargalhada
inesperada, mas tão profunda e alegre que se tornou
contagiante.
“É melhor pararmos com estas congratulações mútuas!”,
exclamou. “São enjoativas! Além do mais, parecemos umas
velhas tontas. O que interessa é que estamos vivos!”
“Sem dúvida. Quando estávamos lá dentro e o vi
inanimado depois de ter levado aqueles tiros, pensei
que tinha morrido.”
O seu interlocutor soltou uma gargalhada.
“Como vê, ressuscitei!”
“Um verdadeiro Cristo, sim senhor.”
Arkan lançou um olhar para a porta da enfermaria, onde
a doutora Koshet o aguardava. Fez-se uma curta pausa e
Tomás olhou-o com expectativa, como se aguardasse que o
seu interlocutor lhe explicasse por que razão o mandara