chamar.
“Não sei se a doutora Koshet lhe disse, mas vou ser
operado daqui a pouco”, indicou o paciente estendido na
maca.
“É uma cirurgia delicada, porque ainda tenho uma bala
alojada num pulmão. Ali a doutora Koshet diz que a
extracção não é problemática e por isso não vê razões
para ficar preocupado. Mas acontece que sou um burro
velho e desconfiado. Além disso, já conheço os médicos
de ginjeira. Dizem sempre que é uma coisinha sem
importância e coisa e tal, e quando damos por ela
estamos metidos em grandes sarilhos.
Gosto por isso de me preparar para todas as
eventualidades. Daí que tenha pedido que o trouxessem
até mim.”
Calou-se um momento, como se considerasse a melhor
forma de pôr a questão.
“Que se passa?”
Desta vez expeliu um suspiro melancólico.
“Passa-se que não sei se sairei vivo da sala de
operações.”
“Oh, que disparate!”, protestou o historiador.
“Claro que sairá! Quem se safou de dois tiros nas
costas safa-se de uma operaçãozita sem importância!
Sabe o que lhe digo? Daqui a uma semana vamos ali à
cidade velha tomar um copo juntos! A minha mãe quer que
eu vá acender umas velas ao Santo Sepulcro. O senhor
far-me-á companhia.”
Arkan ergueu a mão direita, fazendo a Tomás sinal de
que não o interrompesse.
“Também penso que irá correr tudo bem”, sublinhou.
“Esta conversa é apenas para o caso de... enfim, de
Deus decidir de outra maneira.
Estive a pensar bem e já tive uma conversa com alguns
elementos do conselho de sábios da fundação, que me
vieram ontem visitar, e com o professor Hammans. Se
alguma coisa me acontecer, gostaria que o senhor
assumisse o comando do Projecto Yehoshua. Parece-me a
pessoa
indicada
para
levar
a
bom
porto
esta
importantíssima missão. A paz no mundo pode depender do
seu sucesso!”
Ao ouvir estas palavras, o português fez um esforço
para manter um semblante impassível. Ergueu o rosto
para a porta e cruzou o olhar levemente inquisitivo com
a médica, tentando perceber o que tinha ou não sido
revelado a Arkan. Ele ainda estava sob o efeito do
choque por ter sido baleado nas costas e era evidente
que haviam decidido não lhe contar tudo o que se
passara no Kodesh Hakodashim.
“Eu... enfim”, titubeou Tomás, sem saber o que dizer.
“É uma grande honra e... claro que gostaria de aceitar.
O problema é que não sei se... se esse projecto é...
como direi?, é... recuperável.”
O rosto de Arkan contraiu-se numa interrogação e as
sobrancelhas peludas tremeram.
“Como assim?”, admirou-se. “Não sabe se o projecto é
recuperável? O que quer dizer com isso?”
O historiador não sabia para onde se havia de voltar.
Ainda lançou um novo olhar à doutora Koshet, como se
pedisse ajuda, mas acabou por decidir enfrentar o
problema directamente. Talvez a altura não fosse a mais
indicada para grandes revelações, mas se ninguém tinha
tido ainda a coragem de contar tudo a Arkan, ele tê-la-
-ia.
Apertou a mão do paciente com mais força, como se lhe
pedisse que fosse bravo, e fitou-o nos olhos.
“Tenho uma coisa para lhe dizer”, avisou. “Uma coisa...
aborrecida. Não sei se me entende.”
Disse-o com tanta gravidade que o presidente da
fundação
arregalou
os
olhos
de
preocupação,
pressentindo pelo tom que vinha aí algo de muito sério.
“O quê?”, alarmou-se. “O que se passa?”
Tomás pigarreou, inseguro sobre o que estava a fazer.
Mas sabia que tinha de ir até ao fim. Por mais que lhe
custasse, era o seu dever.
“O Projecto Yehoshua já não é possível.” Baixou os
olhos, embaraçado por ser portador daquela notícia.
“Lamento.”
“Porquê? O que aconteceu?”
O português encheu os pulmões de ar, tentando reunir
toda a sua coragem. Não era fácil destruir com algumas
palavras o sonho de uma vida.
“Lembra-se do tubo de ensaio com o material genético de
Jesus?”
“Sim, claro”, devolveu Arkan.
“É aí que está o segredo do Projecto Yehoshua! É esse
ADN que nos permitirá clonar Jesus e trazê-lo de volta
à Terra!”
Estreitou as pálpebras.
“Há algum problema?”
Tomás tentou encarar o paciente, mas não foi capaz. O
que tinha para lhe anunciar era demasiado penoso, cruel
até. Voltou a pensar em recuar, em adiar a conversa
para depois da operação, mas achou que isso seria uma
cobardia. Por mais duro que fosse, tinha de ir até ao
fim.
“O tubo de ensaio foi destruído.”
Fez-se um súbito silêncio na enfermaria. Até os
enfermeiros, que dialogavam num sussurro contínuo no
canto da sala, se calaram e suspenderam a respiração.
“Destruído?”, perguntou Arkan, sem compreender o total
alcance da afirmação.
“Destruído como?”
O historiador encolheu os ombros, num trejeito de
absoluta impotência e desânimo.
“Destruído.” Soprou para a mão, como se expulsasse pó.
“Puf! Kaputt. Acabou. Já não há tubo de ensaio.”
Fez um gesto final com os braços.
“Foi destruído!”
O presidente da fundação olhava-o com uma expressão
estupefacta e a boca a abrir e a fechar, como um peixe,
tentando tirar um sentido do que acabara de escutar.
“O material genético de Jesus foi destruído? Mesmo
destruído? Mas como? Como?”
“Foi a italiana”, disse Tomás. “Nos instantes finais,
quando o fogo já se aproximava de nós e eu tentava
abrir a porta para sairmos dali, ela atirou o tubo de
ensaio para o meio das chamas.”
“O quê?”
O historiador voltou a baixar os olhos.
“Lamento dar-lhe a notícia”, sussurrou. “Não houve nada
que eu pudesse fazer. O ADN de Jesus está perdido. O
Projecto Yehoshua acabou. Já não é possível clonar o
Messias.”
O silêncio absoluto voltou à enfermaria. A tensão era
palpável. Apenas se escutavam as respirações ritmadas
das pessoas presentes, as que conversavam e as que
esperavam que a conversa terminasse, suspensas no que
iria suceder a seguir.
Arpad Arkan recostou-se devagar na maca, virou a cabeça
sobre a almofada e fitou o tecto enquanto digeria toda
a informação que lhe fora dada. Era um momento de
doloroso recolhimento e Tomás, sentindo-se de repente a
mais, voltou as costas e afastou-se com passos leves,
evitando fazer barulho.