Tomás reagiu com uma careta.
"Agh!", grunhiu. "Não."
Ela levantou-se e inclinou-se para observar as luzes lá fora.
"Vamos parar aqui durante vinte minutos", explicou. "É tempo mais que suficiente para irmos lá fora comprar qualquer coisa para o jantar."
Passava das oito da noite e fazia frio na gare de Vladimir. Dirigiram-se a uma banca de comida ocupada por uma velha babushka e compraram umas espetadas de shashlyk e uns pirozhki de fabrico caseiro, os pastéis salgados com aparência muito suculenta, mais uns biscoitos khvorost para a sobremesa e duas cervejas Baltika.
Quando se preparavam para regressar ao spalny vagon com a comida envolta em sacos de plástico ouviram uma conversa exaltada na plataforma. Olharam e viram três homens fardados a discutir com um viajante japonês, inspeccionando-lhe os documentos e analisando a máquina fotográfica que ele trazia pendurada ao pescoço.
De alguma coisa os polícias pareceram não ter gostado porque, instantes depois, puxaram o turista pelo braço e escoltaram-no para o interior da gare.
"O que aconteceu?", quis saber o português.
"Ele vai ter de pagar uma multa."
"Ah, é? Porquê?"
"Tirou fotografias ali a uma carruagem velha onde vivem uns vagabundos."
"E então?"
Nadezhda pôs o pé no degrau e subiu para o interior do vagão.
"A polícia não gosta disso", disse com indiferença. "Dá má imagem do país."
Comeram na cabina, a mesinha posta como se estivessem em casa; aquele compartimento, luxuoso como um hotel, tornara-se, na verdade, o seu lar. Quando terminaram a refeição, Nadezhda ficou a arrumar as coisas enquanto Tomás foi ao samovar buscar água quente para o chá. Era uma estranha forma de ambos terem uma espécie de vida doméstica.
Nessa noite, aninhados entre os lençóis de um único beliche, fizeram amor com os sentidos bem despertos. O comboio ondulava ao seu próprio ritmo, cata-cata-cata, o som das rodas metálicas a dobrar as junções num compasso interminável; a essa ondulação de aços juntava-se a cadência faminta da carne, os dois corpos dançando como um, um, um e um apenas, unidos já não na volúpia da descoberta, mas no conforto da familiaridade. Tocavam-se e não estranhavam o toque; pelo contrário, sentiam agora que se conheciam, como se o corpo do outro 116
sempre tivesse sido seu. Nadezhda, a mulher pública de Moscovo, era nesse instante a mulher privada de Tomás; pertencia a todos, mas naquela noite entregara-se unicamente a ele.
O beliche não parava de balouçar sob a cadência monótona do Transiberiano na sua corrida nocturna pelas estepes. Os dois amantes repousavam nos braços um do outro, entregues a uma modorra deleitosa, os corpos saciados, as pálpebras entreabertas, os sentidos entorpecidos. Nadezhda pôs o braço em torno da cabeça de Tomás, passou os dedos delgados pelo cabelo castanho-escuro e puxou-o para si, carinhosa, de modo a colar-lhe os lábios ao ouvido.
"Em que pensas tu, Tomik?", murmurou, ronronando como uma gata.
"Em nada."
"Mentiroso. Conta."
"Nada de especial."
"Conta."
Tomás respirou fundo e sorriu.
"Estava a pensar na nossa conversa ao almoço, quando me revelaste como conheceste o Filipe."
"Ah, isso."
O português soergueu-se do beliche, apoiando o corpo no cotovelo.
"Ainda não me disseste qual foi o projecto que trouxe o Filipe aqui à Rússia."
"Se calhar é melhor ser ele a dizer-te."
"Desculpa lá, Nadia, mas tens de me contar. Já me abriste o apetite para essa história e não me podes deixar assim pendurado, não achas?" Olhou pela janela e viu tudo escuro. "Além do mais, temos muito tempo à nossa frente, precisamos de o preencher." Fez um gesto rápido com a mão. "Portanto, vamos lá. Desembucha."
"O que queres tu saber?"
"Tudo."
Nadezhda riu-se.
"Mas eu não sei tudo."
"Então conta-me o que sabes."
"Sei que um dos meus professores, o velho Oleg Karatayev, me chamou um dia ao gabinete e me apresentou um amigo de Portugal. Era o Filhka."
"Que te queria recrutar, não é?"
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"Sim. O Filhka disse-me que fazia parte de uma equipa internacional e que precisava de conduzir uns estudos na Sibéria. O grupo que ele representava pretendia contratar um estudante para fazer esses estudos e o professor Karatayev, que tinha um fraquinho por mim, sugeriu o meu nome. O Filhka veio conhecer-me e perguntou se eu estava interessada."
"E tu?"
"Eu respondi que sim, claro. Aquilo parecia-me uma forma de entrar na profissão. Além do mais, precisava do dinheiro, não é verdade?"
"Ainda não andavas no Night Flight?"
A russa desviou os olhos, desagradada pela referência àquela parte da sua vida.
"Naquele tempo eu trabalhava noutro night club, o Tsunami, que funciona ali na Petrovka Ulitsa. Fazia um número de sereias numa piscina, parece que aquilo excitava os homens." Rolou os olhos. "Foi lá que conheci o Igor Beskhlebov, o mafioso que te mostrei ontem no Night Flight."
"O das três miúdas?"
"Sim, esse cabrão. Quando comecei a trabalhar para ele, levou-me para o Rasputin, outro clube nocturno. Foi para me ver livre dele que depois fui para o Night Flight."
"Estou a perceber", disse Tomás, que na verdade não estava a perceber nada.
Além do mais, a conversa desviava-se do essencial e ele, por muito interessado que estivesse na vida da russa, e estava, sentiu que tinha de corrigir o rumo. "Portanto, o Filipe contratou-te para ires para a Sibéria, não é?"
"Sim, fui no Verão para a zona da tundra. Começaram a chegar notícias perturbadoras daquela região e o Filhka precisava de mim para fazer uma série de medições."
"Notícias perturbadoras? O que queres dizer com isso?"
Nadezhda fez uma careta indecisa.
"Não sei se te deva contar isto, Tomik", disse. "Se calhar é melhor falares primeiro com o Filhka."
"Deixa-te de disparates, o Filipe não está aqui."
"Por isso mesmo. Era melhor ser ele a contar-te."
"Ouve, Nadia. Só daqui a algum tempo é que vamos en-contrar-nos com o Filipe. Para quê todas essas hesitações? Se não me contares agora, ele conta-me mais tarde. Parece-me vantajoso chegar ao pé dele com o trabalho de casa já feito, não achas? Sempre poupamos tempo, eu e ele. Além do mais, vamo-nos entretendo 118
à conversa."
"Hmm."
"Anda, diz lá", insistiu Tomás. "Que notícias perturbadoras eram essas?"
A russa suspirou.
"Está bem, eu conto-te", rendeu-se Nadezhda. "O que se passou foi que começaram nessa altura a correr informações de que o solo tinha aparecido por baixo da tundra."
"O solo? Qual solo?"
"A terra."
"A terra apareceu por baixo da tundra? E depois?"
Nadezhda mirou-o com uma expressão interrogativa.
"Olha lá, tu sabes o que é a tundra?"
"Bem... não."
"Nota-se", exclamou ela com sarcasmo. "A tundra é o 'terreno mais inóspito que existe na Sibéria. Cobre todo o tírculo polar árctico e está congelada. Há pontos onde se 'acumulam mais de mil metros de espessura de gelo, e no topo, ;ao longo da superfície, estende-se um fino tapete de relva "onde crescem muito poucas árvores.
São quilómetros e 'quilómetros assim, sempre com a terra congelada."
"E estás a dizer que a terra apareceu debaixo da tundra?"
"Sim. No Verão."