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"Chegámos", anunciou ela de surpresa.

O português rodou a cabeça, atarantado, não estava à espera que aquele fosse o destino; é verdade que já se encontravam ali fechados havia três dias, mas as coisas anunciadas assim de repente deixavam-lhe a impressão de uma interrupção brusca da viagem.

"O quê?", balbuciou. "Onde? Chegámos onde?"

"Chegámos ao nosso destino, Tomik", sorriu a russa. "Vá, pega na tua mala, mexe-te."

Tomás espreitou pela janela e, para além da escuridão, vislumbrou as águas frias de um rio correrem paralelas à linha férrea, era uma vigorosa mancha escura de líquido, negra como crude, as luzes da outra margem reflectidas no cintilante espelho preto, pareciam formas bamboleantes que dançavam ao ritmo nervoso da ondulação. Decorria a terceira noite de viagem e a composição começou a abrandar, o travão guinchando nos carris. As luzes da outra margem fo-ram-se acumulando, mais e mais, até se tornar evidente que tinham abandonado a taiga e cruzavam já o casario do que parecia uma grande cidade.

"Onde estamos?"

"Este é o Angara."

"Angara? Esta terra chama-se Angara?"

Nadezhda riu-se.

"Não, tonto. O rio chama-se Angara."

"E a cidade?"

"Irkutsk."

O Transiberiano parou e os dois desceram as escadinhas com cuidado. A gare estava cheia; eram viajantes que desembarcavam e familiares que os aguardavam, vendedores à espera de clientes e ferroviários a andarem de um lado para o outro.

Um burburinho atraiu a atenção para um reencontro; no meio de um grupo vislumbrava-se o camuflado de um soldado na emoção do acolhimento pela família.

"Deve vir da Chechénia, coitado", observou Nadezhda.

Ao percorrer a plataforma, Tomás não pôde deixar de se sentir impressionado com a grandeza da movimentada estação, um belo edifício amarelo e verde, de linhas clássicas, cúpulas em ferro ao estilo Art nouveau. A sua companheira de viagem foi direita ao guichet das informações e veio de lá com um papelinho de horários.

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"Temos ainda de apanhar uma camioneta", anunciou ela, acenando com o papelinho.

"O quê? Isto ainda não acabou?"

"Não, Tomik. Falta-nos mais um bocado."

Tomás rolou os olhos, agastado com a notícia.

"Porra", exclamou. "Que seca."

Nadezhda não fez caso dos protestos e concentrou-se na tabela de horários que lhe tinham entregado no guichet.

"Há uma camioneta que sai daqui da estação amanhã às nove da manhã", constatou. "Mas se formos ao terminal de autocarros teremos um outro mais cedo, aí pelas oito. Qual preferes?"

"Eu prefiro ir descansar", resmungou ele, massajando os rins. "Estou moído desta viagem, não posso mais. Três dias num comboio é dose para cavalo."

Fazia um certo frio quando saíram à rua, passava das dez e meia da noite.

Nadezhda chamou um táxi e em dois minutos viram-se a atravessar a ponte sobre o Angara e a mergulhar na velha urbe. Apesar de a iluminação nocturna revelar os encantos da grande cidade siberiana, Tomás não prestou muita atenção ao que girava à sua volta; sentia-se demasiado fatigado para apreciar fosse o que fosse, mostrava-se indiferente à novidade e só queria cair numa cama.

Acabaram a noite num pequeno hotel junto ao estádio. Comeram em silêncio uma sopa borshch e um goluptsi assado e adormeceram logo que se deitaram, aquecidos pelo corpo um do outro.

O dia nasceu esplendoroso.

Depois do pequeno-almoço de leite e kbachapuri, chamaram um táxi e fizeram-se à cidade. Já parcialmente refeito da exaustão dos três dias no comboio, Tomás colou-se ao vidro do automóvel e sorveu Irkutsk com os olhos.

A cidade era diferente do que esperava. Admirou-se sobretudo com a elegância arquitectónica dos edifícios, linhas distintas que Irkutsk aliava a um certo ar cosmopolita; definitivamente, ninguém diria que estavam numa terra perdida algures no meio da Ásia, a uns meros dois passos da Mongólia. A arquitectura apresentava os imponentes traços europeus do século xix, elegante e clássica, intercalada por graciosas casas de madeira, aqui e ali um mamarracho da era soviética a destoar na composição quase harmoniosa.

"E bonito, isto", comentou o visitante, sem tirar os olhos das ruas.

"Claro que é bonito", concordou Nadezhda. "Irkutsk era uma cidade aristocrática, conhecida como a Paris da Sibéria."

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"Que nome tão burguês", disse ele. "Esses ares parisienses devem ter acabado logo que os comunistas tomaram o poder, não?"

"Estás enganado. Os czaristas resistiram aqui muito tempo, o que pensas tu?

Os comunistas só conseguiram entrar na cidade em 1920."

O táxi cruzou toda a parte velha de Irkutsk pela longa Ulitsa Karla Marksa, até apanhar lá ao fundo a Ulitsa Oktyabrskoy Revolyutsii e deixá-los no terminal de autocarros. Nadezhda pediu setecentos rublos a Tomás e entrou na bilheteira, de onde saiu com dois rectângulos na mão.

"Procura a camioneta que vai para Khuzhir", pediu ela.

Tomás olhou para as indicações no topo dos vidros e encolheu os ombros.

"Desculpa, Nadia, não percebo nada", disse, sentindo-se uma nulidade, um verdadeiro peso morto. "Está tudo escrito em caracteres cirílicos."

"B//«/", blasfemou a russa, os olhos em busca da sinalização para Khuzhir.

"Por que razão não aprendem vocês a ler como toda a gente?"

Acomodaram-se nos últimos assentos da camioneta, que já ronronava para aquecer o motor. O veículo enchia-se de passageiros de traços asiáticos e origem evidentemente humilde, buryats que traziam caixas com pintos e sacos de plástico carregados de compras; uns eram camponeses, outros pescadores, e todos exalavam o odor forte das gentes rudes da província.

Partiram minutos mais tarde, ziguezagueando pelo emaranhado urbano até deixarem a cidade e gradualmente entrarem na taiga, percorrendo uma estrada paralela à cadeia de montanhas Primorskij Hrebet. O percurso pareceu-lhes mo-nótono, tão entediante que, embalado pelo balouçar preguiçoso da camioneta, Tomás foi sentindo os olhos pesarem-lhe e a cabeça cambalear, como se respondesse sim aos urros do motor; um e outro solavanco despertaram-no a espaços, fa-zendo-o endireitar-se com brusquidão e sorrir fugazmente à sua companheira de viagem, mas depressa voltava a deslizar para o sossego, invadido por uma pesada e irresistível lassidão, até que o sono foi assentando e mesmo os abanões mais violentos deixaram de o incomodar.

A súbita percepção de que algo de novo acontecera desper-tou-o da sua letargia. Ergueu a cabeça e, estremunhado ainda, ignorando o pescoço dorido pelo incómodo da posição em que adormecera, tentou perceber o que se passava.

Parada.

A camioneta estava parada. O motor tinha sido desligado e os passageiros erguiam-se com dificuldade dos seus assentos, agarrando sacos e pegando em caixas, esticando-se para desentorpecerem os corpos moídos e soltando as pequenas risadas do penitente que antecipa com alívio o fim do suplício. Olhou para o lado e 135

viu Nadezhda pôr-se de pé, também ela se aprontava.

"Chegámos?"

"Ainda não, Tomik."

O português olhou em redor, sem compreender. Os passageiros continuavam a preparar-se para sair, alguns já saltavam lá para fora, e a camioneta encontrava-se definitivamente estacionada.