Desde que há registos meteorológicos, nunca se tinha visto um furacão nessas paragens. E o mesmo se passa no Atlântico Sul. Um furacão designado Catarina cruzou a costa brasileira em 2004, um fenómeno tão inédito que os meteorologistas brasileiros levaram algum tempo a acreditar no que as fotografias de satélite lhes mostravam." Fez uma curta pausa. "O painel intergovernamental de cientistas criado pela ONU estabeleceu em 07 que as temperaturas do planeta deverão subir este século entre um e seis graus e que em geral os fenómenos meteorológicos vão ficar mais extremos: chuvas mais fortes, secas mais graves, ventos mais violentos, tempestades mais brutais." Abanou a cabeça. "E o pior é que o clima poderá estar à beira de cruzar um valor crítico, percebes? Um valor para lá do qual são desencadeados fenómenos que vão tornar inabitáveis importantes partes do planeta."
"Que valor crítico? Estás a falar dos 550 ppm de dióxido de carbono na atmosfera?"
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"Também estou a falar disso, mas estou a falar sobretudo do que acontecerá quando se ultrapassar uma determinada temperatura."
"Bem, presumo que fique tudo gradualmente mais quente, não é?"
"Não, não é. A natureza está concebida de forma a que, em certos pontos críticos, se produzam alterações abruptas. E essas alterações são determinadas muitas vezes por valores térmicos. Por exemplo, a água permanece líquida à medida que a temperatura baixa, mas, quando se atingem os zero graus, fica de repente sólida. Estás a ver? Os zero graus são um valor crítico, a partir do qual tudo muda."
"Sim, estou a perceber. Mas onde queres tu chegar?"
"O que te estou a tentar explicar é que o mesmo se passa com o clima. A partir de uma certa temperatura, as coisas mudam radicalmente e o planeta pode tornar-se inabitável para grande parte da vida actualmente existente, incluindo a humana."
Tomás fez um ar céptico.
"Espera aí", disse. "Uma coisa é sabermos que a água se torna repentinamente sólida aos zero graus, outra é dizer que as alterações do clima serão tão bruscas que a própria sobrevivência da humanidade está ameaçada. Não achas que estás a exagerar um bocadinho?"
Um suspiro paciente foi a primeira resposta. Filipe ergueu-se da cadeira e espreguiçou-se.
"Anda daí, Casanova", disse, começando a caminhar pela areia da praia.
"Vou mostrar-te uma coisa."
XVIII
As águas do Baikal vinham abraçar a areia em vagas suaves; o lago era manso e na superfície escura viam-se pontinhos brilhantes, pareciam diamantes a reflectir o cintilar do Sol no crepúsculo. Filipe tirou os sapatos e calcorreou a berma, chapinhando na água.
"Vem aqui", convidou. "Experimenta a água."
Tomás também descalçou os sapatos e pisou o líquido borbulhante, mas parou de imediato.
"Está fria", queixou-se, saltitando apressadamente de regresso à areia.
O amigo riu-se.
"Não fujas, grande maricas. Anda aqui para a água."
"Estás maluco?"
Filipe baixou-se e mergulhou a mão no lago.
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"Achas que está fria, é?"
"Gelada."
O geólogo endireitou-se e sacudiu a mão molhada, salpicando as calças e o pullover.
"E, no entanto, esta água fria é essencial para manter o nosso planeta vivo."
"Lá estás tu a exagerar", exclamou Tomás. "Toda a gente sabe que a vida prefere a água quente."
Filipe começou a caminhar ao longo do lago, os pés sempre a chapinharem na água, enquanto Tomás mantinha uma distância prudente ao lado, acompanhando-o pela areia.
"Deixa-me explicar-te uma coisa, Casanova", disse Filipe, os olhos presos nas ondinhas que se desfaziam aos seus pés. "Embora não nos apercebamos disso, a Terra é um ser vivo. Da mesma maneira que o ser humano é um ser vivo constituído por biliões de seres vivos, as células, a Terra é um ser vivo constituído por biliões de seres vivos, a fauna e a flora. Por exemplo, se a temperatura mudar muito na Lua ou em Vénus, isso é indiferente para esses planetas, uma vez que estão ambos mortos, não passam de pedra e poeira. Tanto lhes faz que faça muito frio como muito calor, os planetas mortos são como esculturas de mármore. Mas as alterações térmicas não são indiferentes para a Terra, que se encontra viva e que, por isso, está constantemente a regular a sua temperatura e composição. Estás a acompanhar o meu raciocínio?"
"Hmm... mais ou menos."
"Uma das coisas que a ciência já percebeu é que a Terra, como qualquer ser vivo que a habita, tem a capacidade de se auto-regular." Ergueu o dedo, para salientar uma ressalva. "Mas, também como qualquer ser vivo, isso só acontece dentro de determinados parâmetros de temperatura." Deu um pontapé numa onda, provocando um borbulhar aparatoso. "No caso aqui da água, descobriu-se que a temperatura crítica são os dez graus. Quando a temperatura sobe acima dos dez graus, a água tende a ficar livre de nutrientes, o que prejudica a vida. Daí que as águas tropicais sejam tão transparentes e límpidas: não têm nutrientes, à excepção de uma limitada quantidade de algas. Essas águas estão para o mar como os desertos estão para a terra. Pela inversa, as florestas do mar são as águas do Árctico e do Antárctico, uma vez que esses oceanos polares estão a temperaturas abaixo dos dez graus e, por isso, podem encontrar-se nutrientes por toda a parte."
"Desculpa, mas isso não é bem assim", argumentou Tomás. "Que eu saiba existe muita vida marinha nas águas tropicais."
"Só em profundidade, Casanova." Apontou para baixo. "Só lá no fundo, onde a temperatura está abaixo dos dez graus, é que a vida marinha encontra nutrientes."
"Hmm."
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"Isto significa que a maior parte dos oceanos são desertos."
"Estás a falar a sério?"
"Muito a sério", insistiu Filipe. "As águas acima dos dez graus na camada superior cobrem oitenta por cento da superfície de água no mundo. Quer dizer que oitenta por cento da superfície do mar é um deserto."
Tomás curvou a boca.
"Não fazia a mínima ideia."
"As implicações desta descoberta são graves. Se a temperatura global subir, a percentagem de água quente aumentará, o que terá como consequência o alargamento do deserto marítimo."
"Estou a perceber."
Filipe remexeu-se no seu lugar.
"Agora presta atenção, Casanova, porque isto é importante", enfatizou. Fez um gesto que cobriu o horizonte verde em Olkhon e a taiga na outra margem do lago. "Este fenómeno de desertificação no mar também ocorre em terra. Descobriu-se que, cá fora, as temperaturas críticas não são os dez graus, como no mar, mas os vinte. Quando a temperatura desce abaixo dos vinte graus, como acontece no Inverno, a água da chuva permanece muito tempo na terra e o solo mantém-se húmido, o que facilita o crescimento da vida. Mas quando, no Verão, as temperaturas médias rondam os vinte graus, a água da chuva tende a evaporar-se rapidamente, secando os solos. A Terra, enquanto ser vivo que se auto-regula, respondeu a este problema fazendo com que a estação das chuvas ocorra justamente no Verão. A chuva mais frequente compensa a evaporação, estás a perceber? Mas, quando a temperatura média sobe acima dos vinte e cinco graus, a evaporação torna-se demasiado rápida e, a não ser que a chuva seja quase contínua, a terra transforma-se em deserto."