"E quando é que o metano começa a ser libertado?"
Filipe encheu os pulmões antes de responder sombriamente.
"Já começou."
Fez-se silêncio na praia. Tomás esfregou o queixo, tentando digerir esta nova revelação.
"O que queres dizer com isso?"
O amigo fez um gesto em direcção à taiga, do outro lado do lago.
"Está a acontecer aqui na Sibéria", disse. "O gelo da tundra começou a derreter e por baixo encontra-se o metano. Como a temperatura disparou aqui na região, fomos ver o que se está a passar nos lagos que descongelaram. O que vimos deixou-nos aterrados: o metano já começou a borbulhar. Ele está a libertar-se a um ritmo cinco vezes superior ao que as estimativas previam. À medida que o gelo for recuando na Sibéria, mais metano virá cá para fora."
"E agora?"
"O efeito Budyko também já foi desencadeado no metano. Há quem acredite que é como se já tivéssemos empurrado a pedra e ela já estivesse a rolar pela encosta. O efeito cumulativo do dióxido de carbono poderá ter tornado inevitável o colapso da Amazónia. Se a grande floresta desaparecer, serão libertados 250 ppm para a atmosfera, o que nos atirará para uma subida de quatro graus Celsius. Nesse 160
limiar, o equilíbrio poderá revelar-se impossível, uma vez que a libertação do metano siberiano será acelerada. Isso catapultar-nos-á inexoravelmente para uma subida de seis graus que, por sua vez, irá libertar o metano marítimo." Suspirou. "Se isso acontecer, ultrapassaremos os níveis da grande extinção do pérmico."
"Meu Deus!"
"É imperativo que a temperatura não suba acima dos dois graus, de modo a não desencadear o processo que levará o planeta a cruzar o limiar do metano. Há quem ache que isto já não é possível, uma vez que o processo adquiriu uma dinâmica própria, mas a maior parte dos cientistas acredita que ainda vamos a tempo. Para que a travagem aconteça, no entanto, a emissão de gases de estufa tem de cruzar imediatamente o pico e baixar noventa por cento até 2050. Os 550 ppm têm de ser evitados, custe o que custar."
"Mas será que os políticos têm consciência disso?"
Filipe sorriu sem vontade.
"Ninguém tem consciência de nada, Casanova." Abanou a cabeça. "O mais incrível, para mim, é esta indiferença geral que está instalada. Não sei se já reparaste, mas costuma existir um grande contraste nas reacções dos peritos e do público em relação a um determinado tema. Quando confrontado com uma grande mudança, o público tende a ficar muito mais alarmado do que os peritos."
"Achas?"
"Claro. Olha o nuclear, por exemplo. As pessoas que não entendem bem as questões relacionadas com a energia nuclear assustam-se mais do que os peritos, que conhecem o assunto a fundo e se sentem mais tranquilos." Pigarreou. "Mas aqui é ao contrário. O público parece muito descontraído com a questão do aquecimento global, enquanto os peritos estão em pânico. Em pânico, ouviste?" Quase soletrou a palavra pânico. "Quando os cientistas do painel da ONU vieram a público e confirmaram que, nas próximas décadas, as tempestades vão ficar mais violentas, o deserto irá alastrar para mais de metade do planeta e o nível do mar vai subir uma dezena de metros ou mais, o que seria normal acontecer? Acho que a CNN teria de interromper a emissão com grande espalhafato, milhões de pessoas deveriam ter saído às ruas em terror a exigir mudanças imediatas na política energética, os dirigentes políticos teriam de vir à televisão anunciar medidas de emergência para enfrentar esta catástrofe. Não achas que isso seria uma reacção normal?"
Tomás ainda estava a recuperar do choque das revelações sucessivas e balançou mecanicamente a cabeça.
"És capaz de ter razão."
"Mas não foi isso o que aconteceu, pois não? Os cientistas fizeram um anúncio com esta dimensão e... e só faltou ver as pessoas bocejarem de tédio! Achas 161
isto normal?" Voltou a abanar a cabeça. "E os políticos, que deviam ter juízo na cabeça, estão na mesma! Foi por isso que ficámos muito preocupados com a postura que detectámos nos governantes, todos eles com aquela filosofia do deixa andar e o raciocínio de que os que vêm a seguir que desliguem a luz e paguem a conta.
Primeiro em Quioto, depois em encontros que fomos tendo ao longo do tempo, nós os quatro fomos conversando sobre o maior desafio que a humanidade hoje enfrenta: será possível impedir o apocalipse?"
Tomás inclinou-se na cadeira, traindo uma ansiedade mal disfarçada.
"Chegaram a alguma conclusão?"
"Concluímos que precisávamos de fazer uma avaliação rigorosa de duas coisas fundamentais, ambas relacionadas entre si: o aquecimento do planeta e o estado das reservas mundiais de petróleo. E precisávamos de desenvolver um plano energético alternativo para entrar em vigor quando as condições se tornarem propícias."
"Isso parece-me muita coisa."
"E é. O trabalho revelou-se verdadeiramente ciclópico e nós, feitas as contas, não passávamos de quatro gatos-pinga-dos. Felizmente os nossos talentos complementavam-se, de maneira que decidimos dividir as tarefas. O Howard conseguiu um posto importante na Antárctida, onde o aquecimento é mais acelerado do que no resto do planeta e onde se encontram os melhores registos paleoclimáticos, e foi para lá desenvolver novos trabalhos para perceber melhor a alteração do clima. O
James e o Blanco eram físicos com grande capacidade, o Blanco mais teórico, o James mais prático. Ficaram ambos encarregados de procurar soluções tecnológicas inovadoras. E eu, que me sinto como peixe na água na área energética, dediquei-me à avaliação das reservas globais de combustíveis fósseis, de modo a poder indicar qual o momento psicológico adequado para avançar com as soluções que o James e o Blanco viessem eventualmente a desenvolver."
"E foi isso o que vocês andaram a fazer este tempo todo?"
"Sim, embora não de uma forma totalmente estanque. O James e o Blanco trabalhavam muito em conjunto, enquanto eu me encontrava mais próximo do Howard. Cheguei a ir à Antárctida ver os trabalhos paleoclimáticos em que ele estava envolvido." O seu olhar perdeu-se na memória dessa viagem. "Aquilo é muito curioso, sabes? Uma das coisas que descobri é que penetrar nas camadas de gelo é como viajar no tempo."
"Em que sentido?"
"O gelo da Antárctida é formado por camadas sucessivas de neve, não é?
Essas camadas vão-se acumulando umas em cima das outras ao longo de milhares de anos. Ora cada camada de neve contém pequenas bolhas de ar, o que significa que, se fizermos um furo suficientemente profundo no gelo e recolhermos uma 162
camada que tem duzentos mil anos, poderemos detectar nela bolhas com o ar existente nesse período e analisar o seu conteúdo. É assim que se percebe, por exemplo, qual o nível de dióxido de carbono que numa determinada época existia na atmosfera e qual a temperatura média nessa altura. O Howard mostrou-me um pedaço de gelo extraído a três mil e quinhentos metros de profundidade na base de Vostok, no centro da Antárctida. A análise desse gelo mostrou que o planeta está agora perto do ponto mais quente do último meio milhão de anos."