166
Tomás ficou de olhos cravados no seu interlocutor.
"Que foi o que vocês fizeram", observou, entendendo enfim o problema.
"Mas nada disso prova que tenha sido o pessoal do petróleo a matar os teus amigos."
"Então quem foi?"
"Não sei. Se calhar foram os tipos do petróleo, não digo que não. Mas não tens provas."
"Os bilhetinhos são uma prova."
"Quais bilhetinhos?"
"Não foste tu que disseste que foram encontrados ao lado dos corpos do Howard e do Blanco uns bilhetinhos com um triplo seis?"
"Sim. Isso é prova de quê?"
"Isso é prova de que os assassínios se deviam às actividades do nosso grupo."
"Porque dizes isso?"
Filipe bateu com o dedo nas têmporas.
"O Casanova, pensa um pouco. O nosso grupo chamava-se «Os quatro cavaleiros do Apocalipse». Os bilhetinhos mostravam o triplo seis. Não consegues ver a relação entre as duas coisas?"
Tomás assentiu.
"O Apocalipse de João", observou.
"Nem mais", confirmou o amigo. "São duas referências simbólicas extraídas do último texto da Bíblia. Ao deixarem esses bilhetes ao lado das vítimas, os assassinos estavam implicitamente a relacionar as mortes do Howard e do Blanco com as actividades do grupo, tornando claro que se encontravam a par de tudo."
"Tens razão", reconheceu Tomás, balouçando afirmativamente a cabeça.
"Isso faz sentido."
"E essa relação é reforçada pelo verdadeiro sentido do triplo seis."
"Agora é que já não entendo. O que queres dizer com isso?"
"Ouve, Casanova. Tu, que és um perito em línguas antigas, diz-me: o que é o triplo seis?"
"É o número da Besta."
"Isso é o sentido simbólico, tal como vem mencionado no Apocalipse. Mas o que eu quero saber é outra coisa. Se pegarmos nesse número e o decifrarmos, o que dá o triplo seis?"
167
"Usando a guematria, o seis-seis-seis transpõe-se para Neron Kaisar, ou o césar Nero."
"E quem era Nero?"
Tomás ficou atrapalhado com a pergunta, tão óbvia lhe parecia a resposta.
"Bem, era o imperador de Roma que perseguiu os cristãos."
"Sim, mas qual o acontecimento que o celebrizou, a ele e à sua lira?"
"O incêndio de Roma?"
Filipe bateu com a palma da mão na mesa.
"Isso", exclamou. "O que significa que Nero é fogo." Soergueu a sobrancelha.
"E a quem é que Séneca comparou Nero?"
"Ao Sol?"
"Uh-uh", confirmou Filipe. "Séneca comparou Nero ao Sol quando escreveu:
«O próprio Sol é Nero e toda Roma.»"
"Eu conheço esse poema."
"Deixa agora ver se chegas ao jackpot: que astro tem um nome que, transposto em números pela guematria, apresenta um triplo seis como valor?"
"Teitan", rendeu-se Tomás.
"Certo, outra vez!" Apontou na direcção do clarão do crepúsculo, cujos derradeiros raios se extinguiam para lá da janela do bar. "Teitan, ou Titã. Um dos nomes do Sol."
"Mas o que significa isso?"
"Não é óbvio?", perguntou Filipe. "Nero é fogo e Nero é o Sol. O que geram o fogo e o Sol?"
"Calor?"
"Então foi essa a mensagem que os assassinos deixaram quando largaram esses bilhetes ao lado das vítimas. O triplo seis é uma mensagem que os criminosos conceberam para associar os homicídios ao grupo dos quatro cavaleiros do Apocalipse e para associar os homicídios ao trabalho do grupo: o combate ao aquecimento do planeta. Como é que se faz esse combate? Criando as condições para acabar com os combustíveis fósseis. E isso põe em causa que indústria?"
"A indústria do petróleo."
"Nem mais." Pegou no copo e observou o vinho a balouçar no interior. "A indústria do apocalipse." Mordeu o lábio. "Foi por isso que, quando tomámos conhecimento dos assassinatos e dos assaltos às nossas casas, e quando soubemos que o triplo seis foi deixado ao lado dos corpos dos nossos amigos, eu e o James 168
percebemos instantaneamente o que se passava e que só tínhamos uma coisa a fazer." Engoliu de uma vez um trago de tinto, como se quisesse que o álcool apagasse o instante em que haviam tomado a decisão. "Desaparecer da face da Terra."
Tomás ficou um longo momento calado, quase perplexo, imerso nos seus pensamentos, avaliando o que lhe fora dito e considerando explicações alternativas.
"Eu percebo tudo isso", observou, ao fim de alguns segundos. "Mas será que esses tipos chegavam ao ponto de... de matar só para parar uma pesquisa científica?
Isso não faz muito sentido..."
Filipe suspirou.
"Pelo contrário, faz todo o sentido."
"Mas como?"
"Ouve, Casanova. Já te disse que conheço a indústria do petróleo como ninguém e, por isso, acredita no que te digo: os interesses para manter o mundo dependente dos combustíveis fósseis são vastos e poderosos. Quase todos os agentes da economia mundial desejam a manutenção do status quo e consideram que qualquer mudança fundamental põe em causa os seus interesses. O que é verdade."
"Isso é muito vago."
"Não é, não. Tudo isto tem nomes e rostos."
"Então diz lá quem."
"Olha, vamos começar pelos países em desenvolvimento em África, na Ásia e na América Latina. Todas as suas opções de crescimento económico passam, como já te disse, pelo aumento do consumo de energia o mais barata possível, energia essa que tende a ser muito poluente e é produzida pelos componentes que mais aquecem a atmosfera. Estes países encaram as políticas de redução da emissão de dióxido de carbono como um ataque directo ao seu esforço para escapar da pobreza. E como eles dependem de energia barata, que é a mais poluente, para alcançarem o crescimento económico,
é evidente que se tornaram opositores naturais aos esforços para pôr termo à dependência mundial em relação aos combustíveis fósseis."
"Ah, sim", exclamou Tomás, recordando-se do que o amigo lhe contara meia hora antes na praia. "Foi por isso que Quioto falhou, não foi?"
"Essa foi uma das razões, sim", assentiu Filipe. "Mas o segundo grupo de suspeitos também teve muito a ver com esse falhanço."
"Quem?"
"Os produtores de combustíveis fósseis."
169
"As petrolíferas?"
"Sim, mas não só. Os países da OPEP e a indústria do carvão formam com a indústria petrolífera um implacável triângulo de resistência à mudança. A cabeça deste grupo estão as seis principais petrolíferas do globo: a Aramco saudita, a companhia iraniana do petróleo, a PEMEX mexicana, a PdVSA venezuelana e os dois gigantes ocidentais, ExxonMobil e Shell. Qualquer sugestão de que os combustíveis fósseis nos estão a conduzir à catástrofe constitui uma ameaça real ao negócio deste grupo. Consequentemente, os seus membros reagem de modo implacável a essa ameaça, utilizando gigantescos recursos financeiros, políticos e diplomáticos para silenciar tais sugestões."
Tomás arrancou um pedaço de carne da espetada, colocou-o sobre o pão e trincou.
"O que fizeram eles em concreto?", perguntou, enquanto mastigava.
"Muita coisa, mas sobretudo pressão sobre o terceiro grande travão à mudança, os Estados Unidos. A economia americana é o maior consumidor mundial de energia e qualquer tentativa para enfrentar os combustíveis fósseis é encarada como uma ameaça à estabilidade do país. Os legisladores e presidentes americanos têm, ao longo do tempo, adoptado políticas que defendem o status quo energético e as indústrias de combustíveis fósseis."