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Dawson despediu-se e saiu do Nodwell, que logo partiu. Diante dele erguia-se o Crary Science and Engineering Center, um edifício longo e cor de cimento, parecia um pré-fabricado. O cientista pontapeou a neve suja, contrariado por terem construído a base precisamente naquele local. McMurdo foi erguida junto ao único vulcão activo daquela zona da Antárctida, o monte Erebus, num canto da ilha Ross, e as cinzas vulcânicas conspurcavam o solo da base, quebrando o efeito de pureza virginal e cristalina que constituía a imagem de marca do continente.

A resmungar, atravessou o pequeno pontão até à entrada, inseriu o cartão digital na ranhura, abriu a porta e entrou no edifício. Sentiu o calor interior envolver-lhe o corpo com doçura e apressou-se a fechar a porta. Tirou a parka, descalçou as bunny boots e pôs-se à vontade, deambulando de meias pelo edifício deserto àquela hora tranquila de um domingo de bingo. Foi para o gabinete, ligou o computador e, enquanto o ecrã se animava, decidiu ir trincar qualquer coisa. Percorreu os estreitos corredores cercados por gabinetes, as portas fechadas com a indicação dos números de projecto dos seus ocupantes — S-015, S-016, S-017 —, e por aí fora. Algumas tinham uma placa metálica com as alcunhas dos projectos, aqui os Penguin Cowboys, ali os Sealbeads, acolá os Bottom Pickers. Passou depois pelas salas de reunião e pelos laboratórios pejados de microcentrifugadoras e tubos de ensaio, atravessou o grande salão com a sua enorme janela voltada para o McMurdo Sound, exibindo uma vista espectacular sobre as montanhas Transantárcticas, e chegou à cozinha.

Para além do microndas, do forno, do frigorífico e de tudo o que normalmente se encontra numa cozinha, acumulavam-se aqui múltiplos depósitos de lixo, em conformidade com o protocolo do Waste Management Program da base.

Distantes iam os tempos em que o lixo era abandonado sobre o gelo ou incinerado todos os sábados em McMurdo. A Antárctida tornara-se uma imensa zona protegida 16

e o protocolo de protecção ambiental do continente requeria que todos os resíduos fossem guardados para serem depois levados para os países de origem, neste caso os Estados Unidos. Até o reactor nuclear da base, que para ali fora trazido em 1961, acabou por ser retirado onze anos depois. Em conformidade com o protocolo, havia na cozinha ranhuras para dezoito tipos diferentes de resíduos e Dawson chegava a gastar dez minutos para se ver livre de um mero saco de lixo; os cartões usados tinham o seu depósito, os metais outro, até o óleo de cozinha dispunha de um contentor próprio, pelo que o cientista perdia muito tempo a escolher o sítio para onde ia despejar cada peça de lixo.

Desta vez, porém, o contentor da junk food seria o seu próprio estômago. A fraquejar de fome, Dawson tirou da arca um chili con carne congelado e pôs a refeição a aquecer no microndas.

"Professor Dawson?"

O cientista deu um salto com o susto. Olhou para o lado e viu um desconhecido parado sob a ombreira da porta, óculos espelhados a esconderem-lhe os olhos.

"Jesus Christ!", exclamou, ainda a refazer-se do sobressalto. "Quem é você?"

"Professor Howard Dawson?"

"Sim, sou eu. Posso ajudá-lo?"

O desconhecido deu um passo em frente, ergueu o braço direito e apontou a pistola.

Crack.

Crack.

Howard Dawson dobrou-se sobre si mesmo e tombou com dois buracos no peito.

O desconhecido aproximou-se e colou o cano quente e fumegante à testa do cientista moribundo.

Crack.

I

Uma nesga de luz jorrou por uma estreita frincha do cortinado, iluminando o rosto enrugado e adormecido de Graça Noronha. O foco apareceu de repente, provavelmente era uma nuvem que lá fora destapara por momentos o Sol, foi apenas um clarão fugaz, mas o suficiente para despertar a senhora. Dona Graça entreabriu os olhos, o verde cristalino brilhando sob o efeito da luz, apalpou a mesinha-de-cabeceira, encontrou os óculos, colo-cou-os no rosto e endireitou-se na cama.

"Manei! Manei!", chamou. "Onde estás tu, homem?"

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Tomás levantou-se do sofá da sala e quase correu para o quarto.

"Então, mãe? Já acordou?"

Dona Graça olhou para o filho com uma expressão interrogativa.

"O teu pai? Ainda está no escritório?" Abanou a cabeça. "Aquele homem anda sempre no mundo da lua! Ó Tomás, vai-lhe lá perguntar se ele quer um chazinho, vais?"

O filho abeirou-se da mãe e sentou-se na cama.

"Então, mãe? Que conversa é essa?"

"Vai lá ver se o teu pai quer tomar o chá, anda. Já se faz tarde."

Tomás suspirou, deprimido.

"O mãe, o pai não está cá."

"Não está cá? Não me digas que ainda se encontra na faculdade." Rolou os olhos, enchendo-se de paciência. "Va-lha-me Deus, aquele homem é mesmo despistado."

"Mãe", disse o filho, a voz cansada. "O pai morreu no ano passado."

Dona Graça fez um ar admirado.

"O teu pai morreu no ano passado? Mas que disparate estás tu para aí a contar, hã?"

"A mãe não se lembra?"

"Claro que me lembro. Ainda esta manhã lhe estive a preparar o pequeno-almoço."

Tomás abanou a cabeça.

"A mãe passou a manhã toda na cama a dormir."

Dona Graça empertigou-se.

"Estás parvo ou quê? Então não me lembro de ter feito hoje o pequeno-almoço ao teu pai?"

"A mãe está a fazer confusão."

"Confusão, eu? Mas que conversa é essa?" Fez um gesto impaciente com a mão. "Vai lá chamar o teu pai, anda."

Tomás respirou fundo. Pegou na mão fria da mãe e afagou-a com carinho.

Depois levantou-se e dirigiu-se para a porta do quarto.

"Deixe lá estar o pai em paz. Quer que eu vá preparar um chá?"

"Não quero chá nenhum."

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"Então é melhor vestir-se", disse o filho.

"Vestir-me? Para quê?"

"Não se lembra?"

"Lembro-me de quê?"

"Vamos ao doutor Gouveia."

"Fazer o quê?"

"Temos consulta marcada."

"Qual consulta? Que eu saiba, não estou doente..."

"É às quatro. Vá, despache-se."

A enfermeira sorriu para Tomás e Tomás sorriu de volta. Era uma rapariga nova e a presença daquele homem de olhos verdes luminosos, tão felinos no contraste com o cabelo cas-tanho-escuro, não lhe era indiferente. Mas logo Tomás a ignorou, intimidado com aquele lugar de sofrimento; sentia-se desconfortável por se encontrar de regresso aos hospitais da Universidade de Coimbra, justamente o local onde um ano antes o pai tinha morrido. O facto, no entanto, é que era aí que o médico da família dava as suas consultas e não dispunha de fuga possível; se queria que o doutor Gouveia continuasse a acompanhar a mãe como fazia havia tantos anos, tinha mesmo de se submeter àquela provação.

"Aquela tua amiga árabe vai preparar hoje o jantar?", perguntou dona Graça de repente.

O filho respirou fundo.

"Não é árabe, mãe. É iraniana."

"É tudo a mesma coisa."

"Não é tudo a mesma coisa", disse, abanando a cabeça. "Que confusão."

Mirou a mãe. "Além do mais, ela não vai preparar o jantar porque voltou para o país dela no ano passado. Não se lembra?"

"Estás parvo? Ainda ontem a vi..."

"Não, mãe. Foi no ano passado."