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O historiador despiu-se devagar, os sentimentos entorpecidos. Sentia-se chocado com a forma leviana e descarada como Nadezhda o trocara por outro, mesmo ali diante do seu nariz. Vestiu o pijama e deitou-se na cama. Tinha-se habituado a ela, à sua familiaridade, a considerá-la sua, mas essa ilusão fora quebrada com violência, como um espelho que se parte e agora sim fala verdade, mostra a realidade não como a unidade perfeita que via antes, mas como o mosaico estilhaçado que na sua essência era.

Apagou o candeeiro a petróleo e o yurt mergulhou na escuridão completa.

Mas não no silêncio. Os risinhos de Nadezhda e as gargalhadas de Filipe transformaram-se noutra coisa; ela agora gemia e ele grunhia e arfava. O colchão agitava-se em solavancos, guinchando e chiando, abanando como um bote em águas tumultuosas. Tomás fechou os olhos e, em desespero, pôs a cabeça debaixo do cobertor, como se assim conseguisse evadir-se daquele pesadelo. Por instantes pareceu-lhe melhor, mas a sua curiosidade traiu-o e, concentrando a atenção, captou os sons da refrega tumultuosa que agitava a cama ao lado.

Uma puta, pensou. Sou mesmo estúpido. Só eu para me afeiçoar a uma puta.

Os gemidos e os grunhidos subiram de tom e explodiram numa apoteose de urros e vagidos, para logo tudo serenar, como uma bonança que se impõe abruptamente. Depois de um breve turturilhar, manso e repenicado, o silêncio instalou-se enfim no yurt e Tomás, esforçando-se por ignorar o que se passara, esvaziou a mente e deixou-se deslizar gradualmente para o sono.

Barulho.

Um barulho a meio do sono trouxe-o de volta à consciência, como se estivesse imerso em águas quietas e uma força desconhecida o puxasse bruscamente à tona. Sonhara com a mãe e ouvira o som do corpo dela tombar pelas escadas, cumprindo a ameaça que lhe fizera quando a deixara no lar. Seria um sonho 181

premonitório? Será que ela estava bem? Em boa verdade, teria mesmo sonhado?

Ainda entorpecido pelo sono, mas incomodado pela súbita inquietação, decidiu confirmar; era a melhor maneira de recuperar a tranquilidade e a paz de espírito.

Aguçou por isso os ouvidos e pôs-se à escuta.

Mais barulho.

Sentiu movimento lá fora. Não havia dúvidas, aquilo não fora sonho, a mãe não se atirara das escadas. O facto é que se aproximava alguém, ouvia-lhe os passos e a respiração arfada.

Soergueu-se na cama, já desperto, os cotovelos assentes no colchão, e tentou ver na escuridão.

"Filbka!", chamou um homem à porta do yurt, a voz transmitindo urgência.

"Filhka!"

"Cbto?" Era a voz estremunhada de Filipe. "Kto eto?"

"Eto ya, Borka."

"Chyo takoe, Borka?"

"Tam tebya rebyata icbut, u nikh stvoly."

Filipe saltou da cama, alarmado, e Tomás sentiu o coração disparar; não sabia o que se passava mas percebia que algo estava a acontecer.

"O que é? O que se passa?"

"Veste-te", ordenou Filipe. "Já! Já!"

"O que se passa?"

"Andam homens armados à nossa procura."

XXII

Esgueiraram-se pela porta do yurt e mergulharam apressadamente na escuridão, Tomás ainda a apertar o cinto das calças, Nadezhda a abotoar o casaco.

Seguiam o desconhecido que os alertara, um magricela chamado Boris que os levou às escuras ao longo do perímetro do acampamento e depois para além dele. Ouviram alguns gritos lá atrás e viraram a cabeça para tentar descortinar o que se passava, mas a sombra era opaca e nada conseguiram vislumbrar; dali vinham apenas sons de ordens e de corrida e de metais a tilintar.

Progrediam com os braços estendidos para a frente, às cegas, tacteando o caminho, enxergando apenas o vulto esquivo do companheiro da frente. Boris era o único que parecia saber exactamente para onde ia e por isso caminhava na dianteira, guiando-os pela floresta de tomilho e larícios; por vezes embatiam num tronco, tropeçavam num galho, chocavam com um arbusto ou arranhavam-se em cardos, 182

mas o medo impelia-os para a frente, empurrava-os para a fuga, as pernas leves, os sentidos atentos, o coração aos saltos, a dor anestesiada.

Calcorrearam a taiga durante umas dezenas de minutos, por vezes atingindo becos de vegetação que os obrigavam a recuar, até que a floresta se abriu bruscamente numa clareira e deram consigo diante de um pequeno povoado.

"Kharantsy", anunciou Boris.

"Estamos na aldeia de Kharantsy", explicou Filipe num sopro, sem se atrever a levantar a voz. "O Borka conhece bem isto."

"Quem é o Borka?"

O amigo apontou para o russo.

"É o Boris. Tratamo-lo por Borka."

Boris fez-lhes sinal de que esperassem e sumiu-se na noite, deixando os três parados à entrada da aldeia, tremendo de frio e de medo, sem saberem o que fazer.

"Onde foi ele?"

"Foi arranjar maneira de nos tirar daqui. Vamos esperar."

Ficaram calados um longo minuto, quase de respiração suspensa para ouvirem melhor; aguçaram a atenção de modo a tentarem identificar qualquer ruído suspeito, qualquer som fora do normal, mas tudo permanecia tranquilo e apenas escutavam o seu próprio arfar reprimido.

"Quem são os gajos armados?"

"Não sei."

"Então porque estamos a fugir?"

"Porque não é normal haver gente a entrar com armas a meio da noite no acampamento." Filipe sentia-se a arquejar. "Quando o Howard e o Blanco morreram, vim esconder-me aqui em Olkhon, que conhecia dos meus tempos de estudante em Leninegrado." Fez uma pausa para recuperar o fôlego. "Andei todo este tempo à espera que uma coisa destas acontecesse e foi por isso que montei um sistema de alerta com uns rapazes a quem pago uma mensalidade." Fez um gesto na direcção da escuridão que engolira Boris. "O Borka é um deles."

Calaram-se de novo, procurando ruídos suspeitos. Nada. Apenas escutavam as suas respirações ainda arquejantes e o vigoroso farfalhar das árvores que murmuravam ao vento.

"Os homens armados", disse Tomás. "Como é que eles descobriram o teu paradeiro?"

"Boa pergunta."

"Achas que nos seguiram, a mim e à Nadia?"

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"É o mais provável."

"Desde Moscovo?"

"É o mais provável."

"Porra", murmurou o historiador, desalentado. "Não me apercebi de nada."

Filipe suspirou.

"A culpa é minha", disse. "Nunca devia ter respondido ao teu e-mail."

"Mas como terão eles sabido?"

O amigo considerou esta pergunta.

"Tu não foste a Viena?"

"Fui. Dei um salto à OPEP para tentar perceber o que andavas tu a investigar no dia em que mataram o americano e o espanhol."

"Então foi aí. Os gajos toparam-te e puseram alguém atrás de ti para ver onde os levavas."

Tomás abanou a cabeça, agastado.

"Sou mesmo estúpido."

"A culpa é minha", repetiu Filipe. "Eu é que devia ter sido mais esperto."

Escutaram passos e calaram-se, os três muito alarmados, tentando identificar a ameaça. Um vulto materializou-se ao pé do grupo, fazendo-os estremecer de susto.

Era Boris, que voltara da sombra. O russo sussurrou algumas palavras e levou-os pelas ruas adormecidas da aldeia para um edifício que lhes pareceu um estábulo.