Mãe Terra e isso condena-nos a todos. Precisamos de respeitar o lago e a montanha, a taiga e a estepe, a águia e o peixe, ou então perderemos tudo. Precisamos de tenger medne. Cada um de nós é responsável pelo que faz e tenger vê tudo o que é feito e é o derradeiro juiz e o fazedor de destinos."
"Precisamos de quê?", perguntou Tomás, interrompendo a tradução em simultâneo.
"Tenger medne", repetiu Filipe. "E a responsabilidade pessoal, a relação que temos com o universo. Os xamanes acham que a relação dos seres humanos com o universo é directa, sem nada que se interponha, nem livros sagrados, nem padres, nem mesmo xamanes. Apenas tenger medne."
Khamagan calou-se nesse instante e a russa voltou a falar, desta vez mais agitada, apontando sucessivamente para a praia, para o interior da gruta e para o lago. Filipe ficou tão absorto no que ela dizia que deixou de traduzir, mas depressa isso se tornou irrelevante. O velho xamane escutou-a em silêncio, balançou a cabeça quando ela por fim se calou e pronunciou então uma única palavra.
"Da."
Aquele sim impulsionou-os à acção. Entraram na gruta e inclinaram-se na sombra, pegando num objecto cujas formas Tomás não conseguia distinguir.
Levantaram o objecto e ar-rastaram-no para fora da pequena caverna.
"O que é isso?"
"É um caiaque, não vês?"
Era, de facto, uma embarcação de madeira, estreita e longa, com capacidade para duas pessoas. Desceram o declive, depositaram o caiaque na água e voltaram à gruta para ir buscar a segunda canoa. Tomás foi com eles e desta vez ajudou a transportar a embarcação. Quando franqueou a porta da gruta com o caiaque nos braços tropeçou numa pedra e quase caiu, mas conseguiu recuperar o equilíbrio a tempo. Foi nesse instante que ouviu a voz de Nadezhda.
"Eles estão a chegar."
Contorceu a cabeça, ergueu o caiaque mais alto e espreitou, tentando perceber o que se passava. Por cima da praia, entre uma nuvem de pó, viu dois pares de faróis a aproxima-rem-se.
Eram os jipes.
"Depressa! Depressa!"
Os três homens quase correram pela encosta com o caiaque aos ombros.
Atiraram a canoa para a água e Filipe apontou para Tomás.
"Tu vais com a Nadia neste caiaque." Indicou a embarcação mais próxima.
"Eu vou com o Borka no outro."
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Nadezhda equilibrou-se na canoa e esperou que Tomás se acomodasse. O
historiador olhou de relance para o local onde vira os jipes e constatou que eles se tinham imobilizado; as portas abriam-se e os ocupantes saltavam cá para fora. Não precisava de ver mais; tomou o seu lugar e pegou no remo.
"Depressa!"
Filipe praguejou em português enquanto entrava no segundo caiaque.
"Mas como é que estes cabrões sabem onde nós estamos?"
"Será que alguém nos denunciou?", alvitrou Tomás.
"Mas quem? Só há bocado é que decidimos vir aqui para a Shamanka..."
"Se calhar andam a vasculhar toda a ilha."
Ouviram vozes ao fundo. Eram os homens dos jipes que já os tinham identificado e gritavam ordens.
Os remos dos dois caiaques tocaram na água e as embarcações começaram a afastar-se do rochedo.
"Para onde vamos?", perguntou Tomás, que deixara de ver a outra canoa.
Foi a escuridão que lhe respondeu.
"Vamos separar-nos", disse a voz de Filipe. "Tu vais com a Nadia."
"Encontramo-nos onde?"
"Não sei. Eu depois contacto-te."
Os desconhecidos corriam pela praia e atingiram num ápice a Pedra Xamane.
Remando furiosamente, Tomás conseguiu ganhar alguma distância antes de se atrever a espreitar para trás. Viu a silhueta dos homens recortada no promontório pela fogueira de Khamagan e algo lhes cintilava nos braços.
Zzzzzzmm, zzzzzzmm, zzzzzzmm.
Um zumbido cortou o ar em redor do caiaque, seguido por um estrelejar de estampidos. A água fez plocs sucessivos mais adiante, eram projécteis que tombavam no lago.
"Eles estão a disparar contra nós", exclamou Tomás, quase em pânico.
A sua mente pareceu dividir-se nesse instante. Uma parte foi invadida pelo medo e pelo impulso de se escapar, de sair dali, de se escapulir a qualquer preço, mas uma outra, a racional, contemplava a situação com um alheamento bizarro; tinha a impressão de não passar de um mero espectador a apreciar a cena com distanciamento, como se nada daquilo lhe dissesse respeito. Essa metade racional espantou-se com a forma como tudo sucedia, nunca esperara que ser alvejado fosse 189
assim. Sempre imaginara que primeiro se ouviam os estampidos e só depois o soprar das balas, como nos filmes, mas afinal era ao contrário; as balas voavam mais depressa do que o som, os zumbidos chegavam antes dos estampidos.
"Chiu", soprou Nadezhda. "Não faças barulho."
"Mas eles estão a disparar contra nós!"
"Abriram fogo às cegas", explicou ela. "Não nos vêem." Os estampidos depressa se silenciaram e não houve mais zumbidos em torno da canoa. Nadezhda tinha razão. Os desconhecidos não viam os caiaques. Apenas enxergavam o manto negro do Baikal a fundir-se com a noite siberiana.
XXIII
A canoa cortava a água com silenciosa rapidez, os remos dançando alternadamente a bombordo e a estibordo, os remadores ofegantes com o esforço de manterem o ritmo; um-dois, um-dois, força, força, um-dois, sempre em frente, força, mais um bocado, um-dois, um-dois.
Dez minutos consecutivos a remar tiveram, porém, o seu preço. Tomás sentiu os músculos dos ombros e do pescoço pesarem como pedras e os braços quase adormecerem de entorpecimento. Esvaindo-se de energia e os pulmões arquejando por ar, o combustível do medo esgotado pelo esforço desesperado da fuga, acabaram ambos por abrandar a cadência com que puxavam a água com os remos; o caiaque, deslizando agora mais devagar, deixou de ser um projéctil disparado pelo lago e tornou-se uma frágil e delicada casca de noz, de repente infinitamente sensível ao ondular tenro do Maloye Morye, o estreito entre a ilha e o continente.
"Onde estão eles?", murmurou Tomás por entre duas golfadas de ar, o coração num batuque de cansaço.
"Quem? O Filhka e o Borka?"
"Sim."
"Não sei. Andam por aí."
Recuperando o fôlego, o historiador olhou em redor e tentou descortinar movimento, mas a escuridão em torno da canoa era opaca; apenas conseguia distinguir alguns pontos luminosos diante de si, provavelmente casas isoladas no meio da estepe ou da taiga. Ao longe, as luzes de Khuzhir e a chama vacilante da fogueira de Khamagan, sinalizando a Shamanka, mostravam-lhes que a costa de Olkhon continuava perigosamente próxima. A água parecia petróleo de tão impenetravel-mente negra; reflectia apenas as poucas luzes que rodeavam o lago, 190
archotes trémulos que ondulavam ao sabor nervoso das vagas.
Ao fim de alguns minutos de descanso recomeçaram a remar, mas já sem o vigor frenético que os impulsionara minutos antes. Na mente de ambos repetia-se incessantemente o som arrepiante que haviam escutado depois de abandonarem a Shamanka, o sibilar sinistro e baixo das balas a ceifarem o ar em seu redor, como adagas invisíveis que dissecavam o vento, lembrando-lhes que os maiores perigos nunca se fazem anunciar com pompa, antes aparecem pela calada, com insidiosa brusquidão, invisíveis e traiçoeiros.