Perderam a conta ao tempo que passaram a remar. Vista da praia do acampamento yurt, à luz acolhedora do entardecer, a costa que se erguia do outro lado do Maloye Morye parecia ao alcance de um braço, tão tentadoramente próxima; mas agora ali, cegos pela noite e esfaimados pela ânsia de devorarem o caminho, as costas doridas e o medo a ruminar-lhes no estômago, a extensão tornava-se insuportável. Estariam perto? Estariam longe? Contemplando as luzes, a distância parecia permanecer sempre igual; ou talvez não, vendo bem, a fogueira do Khamagan não passava de um quase insignificante tremelicar, era uma estrela que cintilava no horizonte, indício seguro de que a Shamanka já ficara bem para trás.
O caiaque embateu de repente em algo invisível e os dois tiveram um sobressalto. Teriam encalhado? Teriam chocado com uma rocha? Nadezhda inclinou-se e apalpou a madeira às cegas, procurando verificar se havia água, se o embate tinha rasgado a base da canoa.
"O que foi?", sussurrou Tomás, ansioso.
A mão de Nadezhda percorreu toda a madeira, mas o interior do caiaque permanecia seco, o que a fez suspirar de alívio.
"Está tudo bem", assegurou.
"Então o que aconteceu?"
A pergunta era boa, sobretudo porque o caiaque continuava imobilizado. A russa ergueu-se com cuidado e inclinou-se para a frente, de modo a apalpar o exterior da canoa. Mergulhou a mão na água fria, à proa, e percorreu-a de um lado para o outro, sem perceber ainda o que tinha acontecido. Como nada detectou, inclinou-se um pouco mais e afundou o braço na água, meio a medo, até que os dedos tocaram numa superfície suave e granulosa.
"Areia", exclamou ela. "Embatemos num banco de areia."
"Oh, não. E agora?"
"Blin! Temos de sair daqui."
Tomás equilibrou-se na canoa e, com o remo, experimentou o fundo. De facto, havia ali areia e tudo indicava que a proa tinha encalhado, uma vez que a ré flutuava mas a parte dianteira parecia encravada em alguma coisa.
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"Achas que chegámos à praia?", arriscou ele.
"É possível. Consegues ver alguma coisa?"
Abriram ambos muito os olhos, tentando vislumbrar sinais da costa. Já se haviam habituado à escuridão, mas era difícil, sem referências de luz, lobrigar algo para além das trevas densas diante deles. Era como se estivessem rodeados pelo abismo, incapazes de destrinçar um dedo à frente do nariz, totalmente perdidos naquela sombra cerrada. E, no entanto, era imperativo que percebessem onde se encontravam. Tomás voltou a experimentar o solo com o remo, mas desta feita tocou na parte situada diante da canoa; a areia parecia aqui muito mais próxima do que na ré. Sentindo-se mais confiante, descalçou os sapatos e as meias, arregaçou as calças acima dos joelhos e, em preparos de verdadeiro saloio, aproximou-se da proa.
"Deixa-me passar", pediu.
"Tem cuidado, Tomik."
Meteu o pé na água, muito a medo, e o frio percorreu-lhe o corpo e fez-lhe doer os ouvidos. Mergulhou a perna com cuidado e pisou a areia ainda antes de a água lhe tocar no joelho. Depois pousou o outro pé e, com imensa cautela, separou-se da canoa e avançou, passo ante passo, até que a água lhe cobriu apenas os pés e depois já nem isso.
"É a praia", constatou com alívio. "Chegámos ao outro lado."
Voltou para trás e ajudou Nadezhda a abandonar o caiaque. Caminharam os dois de mãos dadas até à praia, como cegos a explorar sem bengalas um caminho desconhecido, e só pararam quando deixaram a areia e sentiram a erva da estepe siberiana arranhar-lhes as plantas dos pés.
"Onde vamos agora?", perguntou Tomás, calçando as meias e os sapatos.
"Acho que é melhor irmos até Sakhyurta."
"A pé?"
Nadezhda emitiu um estalido irritado com a língua. "Vês por aqui alguma carreira de autocarro?" "Não."
"Então porque fazes essa pergunta idiota, Tomik? Claro que temos de ir a pé."
Tomás levantou-se, impaciente.
"Muito bem", disse. "Vamos?"
A russa deixou-se ficar sentada na erva.
"Olha lá, tu consegues ver alguma coisa na escuridão?"
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"Eu não."
"Então senta-te e cala-te."
Dormitavam agarrados um ao outro, unidos num abraço quente que os protegia do frio agreste da noite na estepe, quando se aperceberam do clarão azulado que aos poucos ia pintando o céu. O primeiro a entreabrir os olhos foi Tomás, e o seu movimento despertou Nadezhda.
Amanhecia no Baikal e os primeiros raios da aurora despontavam do outro lado de Olkhon, recortando a sombra negra e longa da ilha no anil escuro do firmamento. Olharam em redor e viram pela primeira vez o cenário da costa onde tinham ido encalhar; rodeava-os a estepe, com a taiga e as montanhas a crescerem lá adiante, a costa rasgada em sucessivas enseadas, baías e cabos, aqui línguas de praia, ali penhascos escarpados. Procuraram sinais dos companheiros em terra e na água, mas apenas vislumbraram a sombra do caiaque abandonado a balouçar diante da praia, como um tronco perdido, oscilando ao ritmo cadenciado das ondas que se desfaziam e refaziam na areia.
"Ê melhor irmos andando", sugeriu Tomás.
Desta vez Nadezhda concordou com a sugestão e levantou-se. A luz do alvorecer era ainda ténue, mas suficiente para destrinçarem o caminho. Sentiam frio e fome e urgia que se pusessem em marcha. Calcorrearam a erva baixa da estepe e seguiram para sudoeste, acompanhando a linha da costa quando possível, procurando caminhos interiores sempre que necessário.
"O sítio para onde vamos ainda é longe?"
"Sakhyurta? São uns quarenta quilómetros."
Tomás rolou os olhos.
"Poça! Isso é uma maratona." Perscrutou o horizonte. "Não há nada antes disso?"
"Que eu saiba não."
"Essa terriola não é aquele sítio onde apanhámos o ferry para Olkhon?"
"É essa mesma. Podemos apanhar lá um autocarro e ir para Irkutsk."
"Mas não é perigoso? Os tipos que andam atrás de nós podem estar a vigiar aquela passagem..."
"E qual é a alternativa, Tomik?"
"Não sei. Diz-me tu."
Nadezhda apontou para as montanhas a noroeste.
"Podemos ir naquela direcção até chegarmos a Manzurka", sugeriu. "Mas são uns oitenta quilómetros."
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"E se subirmos a costa?"
"E ainda pior. A próxima povoação é Baikalskoe, aí a uns trezentos quilómetros."
Tomás dobrou os lábios.
"Bem, então é melhor arriscarmos a terriola do ferry", resignou-se. "Pode até ser que consigamos apanhar uma boleia antes de lá chegarmos, quem sabe?"
A estepe não era lisa, mas ondulada, obrigando-os a escalar elevações e a descer declives. Pequenos arbustos apareciam dispostos a espaços regulares, como se tivessem sido cultivados; viam-se cardos e salvas e um toque de amarelo dos girassóis emprestava cor à paisagem acastanhada e seca.
"Não vive aqui ninguém?", exasperou-se Tomás ao fim de uma mera meia hora de marcha.
"Niet", confirmou Nadezhda, sem tirar os olhos do chão. "O solo é muito pobre, não vês? A estepe tem pouca água. Como isto é quase um deserto, ninguém quer vir para aqui."
Pequenos montes barravam-lhes por vezes o caminho, obri-gando-os a contornar os obstáculos para poderem seguir em frente. A conversa entre ambos era esporádica, feita aos repelões; tinham fome e sentiam-se cansados, queriam sair dali o mais depressa possível, mas viam-se forçados a conformar-se com a situação.