Tomás alimentava, todavia, um ressentimento que até esse momento decidira calar, mas agora, com tanto para andar e sem nada para dizer, sentia-se tentado a expulsar aquele ardor que o martirizava a lume brando.
"Tu gostas do Filipe?", arriscou.
Nadezhda encolheu os ombros.
"Não me queixo", disse. "Sempre cumpriu o combinado. Além disso, está a fazer uma coisa importante, não achas?"
"Claro", concordou Tomás. "Mas o que eu quero saber é se gostas mesmo dele."
"Oh, isso."
Caminhou calada.
"Então?"
"Homens são homens. Vocês gostam de sexo, eu gosto de sexo. Qual é o mal?"
"Mas gostas do Filipe?"
"Eu gosto de todos os homens com quem ando. Desde que Paguem, está tudo bem."
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Tomás ficou um instante a remoer esta última afirmação.
"Não gostavas de sair dessa vida?"
"Qual vida? A de profissional do sexo?"
"Sim."
"Blin!", praguejou. "Mas qual é o teu problema?"
"Nenhum. Tenho apenas curiosidade, só isso." Olhou-a com intensidade. "És obrigada a essa vida?"
Nadezhda riu-se.
"Queres salvar-me, é?"
"Sim, porque não?"
A russa permaneceu uns instantes calada, analisando o chão que pisava.
"És um querido, Tomik. Mas eu não preciso de ser salva."
"Achas que não?"
"Sei que não. Ninguém me obriga a levar a vida que levo. Faço-o porque gosto do dinheiro e porque me dá prazer. Se eu quisesse acabar já hoje, acabava."
Fitou-o com jovialidade. "Sabes o que quer dizer o meu nome?"
"Nadia quer dizer alguma coisa?"
"Não, tolo. Nadezhda. Sabes o que quer dizer?"
Tomás contraiu o rosto numa expressão de ignorância.
"Não faço a mínima ideia."
"Nadezhda significa esperança." Sorriu com alegria. "Esperança. Percebes, Tomik? Eu tenho esperança." Fixou o horizonte com olhar sonhador. "Quando terminar a faculdade, no próximo ano, sabes o que vou fazer? Vou arranjar um Ivan qualquer e vou viver com ele para a Crimeia." Sacudiu o cabelo ruivo, num gesto despreocupado. "Não te preocupes comigo."
"E a máfia deixa-te?"
"Mas qual máfia? Levo a vida que quero levar e deixá-la-ei quando quiser deixá-la. Aqui não há máfias a mandar em mim. Faço o que quero com o meu corpo e quem o quiser tem de pagar." Apontou para Tomás. "E tu, com essa conversa de padre, ficas já a saber que se acabaram as borlas, ouviste? A partir de agora, queres brincadeira, pagas. Não és mais que os outros."
XXIV
195
Uma nuvem de poeira assinalou o que parecia ser a aproximação a uma estrada de terra batida. Os ponteiros do relógio de pulso de Tomás acercavam-se já do meio-dia e os dois fugitivos arrastavam-se em silêncio pela estepe, demasiado cansados e esfaimados para conseguirem falar. A floresta descia as montanhas e aproximava-se da pequena faixa de pradaria, mas ambos preferiram manter-se no descampado, onde a progressão era mais fácil.
A poeira levantada ao longe teve o condão de os despertar da letargia em que haviam mergulhado, animando-os como um balão vazio quando recebe um sopro de ar.
"Vem aí gente", exclamou Nadezhda, subitamente espevitada. "Até que enfim!"
"Mas vêm para cá", observou Tomás. "Precisávamos era de alguém que fosse para lá."
"Não faz mal. Se vem ali um carro, é porque há aqui uma zona de passagem.
Isso é óptimo."
Tentaram prever o percurso do automóvel que erguia toda aquela poeira, mas depressa perceberam que só havia um itinerário possíveclass="underline" o que os conduzia a eles.
A estepe não passava ali de uma estreita faixa apertada entre a taiga e o lago, pelo que as alternativas não abundavam. Como era evidente que nenhum carro podia cruzar a floresta densa e não viram qualquer outra nuvem de poeira que assinalasse mais trânsito numa eventual estrada pela floresta vizinha, tornou-se claro que o percurso da viatura que se aproximava teria inevitavelmente de ser feito pela orla, onde os dois se encontravam. Subiram a uma elevação e ficaram ali em pé, aguardando com expectativa que a viatura viesse ter com eles.
A nuvem cresceu e o motor do automóvel tornou-se audível; parecia um urro em crescendo. O carro emergiu de repente de uma lomba e ficou à vista de ambos.
Era um jipe. Logo atrás apareceu um outro e Tomás sentiu um baque no peito ao reconhecê-los da noite anterior.
"São eles!", gritou.
Puxou Nadezhda pelo braço e correu encosta abaixo, galgando desenfreadamente pela estepe. Não tinha a certeza de que haviam sido avistados, mas isso parecia-lhe possível, provável até. O medo aligeirou-lhe o passo e o cansaço eva-porou-se, substituído por uma injecção de energia que supunha já não possuir. Correram os dois pelo descampado, medindo a aproximação dos jipes com os ouvidos e o canto dos olhos, e num instante cruzaram a linha das árvores e embrenharam-se na taiga.
Cercados pelos pinheiros e pelos arbustos, a progressão tornou-se mais lenta, tão lenta que puderam aperceber-se do silenciar dos motores e do barulho de portas a 196
bater. Tinham sido localizados e os desconhecidos davam-lhes caça. Ouviram gritos de homens e, como uma descarga de adrenalina, esses sons da perseguição deram-lhes novas forças, impelin-do-os para a frente numa cegueira de fuga; correram o mais que puderam por entre as árvores, embatendo em ramos, as roupas e a pele a serem rasgadas por cardos e flores silvestres. Nada, porém, os travava; corriam como lebres pela verdura, esgueirando-se por entre os pinheiros, procurando a todo o custo ganhar distância em relação aos seus perseguidores.
As ordens continuavam a ser berradas algures lá atrás, ora mais próximas, ora mais distantes. Havia alturas em que tinham a nítida impressão de que iam ser aniquilados a todo o momento, mas logo a seguir ficavam com a convicção de que se distanciavam dos desconhecidos. Sentiam os pulmões rebentar e achavam que o fragor da sua respiração era tão alto que inevitavelmente os denunciaria, mas prosseguiram a corrida, avançando sempre mais e mais, internando-se pro-fundamente no coração da floresta.
Um "ai" gemido fez Tomás olhar para trás. Viu Nadezhda caída junto a um arbusto.
"Anda", disse, voltando para trás e dando-lhe a mão. "Depressa."
A russa tentou erguer-se, mas logo esboçou um esgar de dor.
"Não consigo", soluçou. "Torci o pé."
Tomás puxou com mais força.
"Anda. Não podemos parar."
A rapariga levantou-se e deu alguns passos, mas eram mais saltos ao pé-
coxinho do que corrida; tornava-se evidente que não tinha condições para continuar.
"Não consigo", queixou-se ela. "Dói-me."
Tomás olhou para trás. Os perseguidores ainda não tinham aparecido, embora lhe parecesse claro que, se permanecessem ali, depressa seriam apanhados. Olhou em redor, desesperado, à procura de soluções rápidas, mas só uma ideia lhe martelava a mente.
"Temos de sair daqui."
"Foge tu", disse ela. "Tu podes correr, eu não. Foge, Tomik."
O historiador olhou-a, tentado. O que Nadezhda estava a dizer fazia todo o sentido. Se ficasse com ela seriam apanhados os dois; se fugisse, talvez conseguisse escapar. Para todos os efeitos, ela estava perdida. O mais sensato era, sem dúvida, fugir.
Quase aceitou a sugestão, mas no último instante fraquejou. Não a podia deixar ali. Lembrou-se do que tinha acontecido aos dois cientistas abatidos anos 197