respiração.
"Não entendo russo", disse em inglês, a boca a comer terra.
Ouviu uma pancada e um gemido de fêmea, era Nadezhda que tinha sido espancada. Seguiram-se novas perguntas em russo, a que a rapariga foi respondendo por entre soluços.
É o fim da linha, pensou Tomás.
Os russos gritavam com ela e ela respondia num pranto. Depois voltaram-se para ele, puxaram-lhe o cabelo para trás e um homem colou a boca ao seu ouvido e gritou mais alguma coisa em russo. O desconhecido apalpou-lhe o corpo, localizou-lhe os bolsos, revistou-os e retirou o que encontrou. Depois largou-lhe a cabeça e Tomás sentiu o cano voltar à nuca. Escutou vozes a conversar e, instantes volvidos, os restantes homens afastaram-se dois passos, como se quisessem evitar ser apanhados pelo que iria acontecer a seguir.
Vou ser fuzilado, compreendeu com terror.
Nadezhda soluçava. Pelo canto do olho, Tomás percebeu que ela estava igualmente deitada no chão, com uma kalashnikov colada à nuca. Fez-se silêncio na clareira.
Crack.
Um estrondo brutal soou ao lado de Tomás, ensurdecendo-lhe o ouvido direito. Virou o rosto e constatou, horrorizado, que Nadezhda tinha a cabeça desfeita. O sangue e a massa encefálica espalhavam-se pelo chão à mistura com os cabelos cor de cobre.
O cano que se encontrava colado à nuca de Tomás empur-rou-o para a frente, fazendo com que a suA cabeça embatesse no chão. Nesse instante pensou que tudo acabara. Iam disparar. A pressão sobre a nuca desapareceu e, sem compreender bem o que se passava, sentiu o corpo de um homem inclinar-se sobre as suas costas e colar de novo a boca ao seu ouvido.
"Vai-te embora, português", disse o desconhecido, agora em inglês. "Vai-te embora e nunca mais voltes."
Os homens começaram a mexer-se e, em poucos segundos, a clareira ficou deserta. Tremendo de nervos, a consciência Possuída por um sentimento de irrealidade, sem saber se aquilo nao passava de um sonho, Tomás ergueu-se devagar e sentou-se no chão. Os homens tinham mesmo desaparecido, deixan-do-lhe a carteira e o passaporte deitados aos pés.
Os seus olhos incrédulos pousaram então no corpo inerte e ensanguentado de Nadezhda, estendido no solo húmido como uma boneca partida, e foi nessa altura que chorou.
201
XXV
A vivenda exibia o mesmo aspecto tranquilo de sempre, talvez um pouco mais risonho do que das outras vezes que ali fora; afinal a Primavera sempre ia adiantada e os canteiros do jardim já floresciam com exuberância. As rosas comuns cintilavam ao sol, vermelhas e amarelas, intensas de vida, competindo com o laranja dos hipericões, as folhas translúcidas em contraluz; mas era o azul-celeste das nigelas, com as suas pétalas abertas como estrelas, que emprestava o tom exótico à verdura.
Tomás entrou na casa e foi como se estivesse à porta de outro mundo. Até esse instante vivera obcecado com a assustadora experiência que acabara de passar na Sibéria. Não conseguia apagar da memória o som da detonação da kalasbnikov que destruíra a cabeça de Nadezhda nem a imagem da rapariga deitada no chão da taiga, o cérebro espalhado pela clareira onde fora executada. O som e a imagem assombravam Tomás em permanência e fora com essa recordação a martelar a mente que fizera toda a viagem de regresso, desde as margens do Baikal até ao alpendre do lar, em Coimbra.
No instante em que atravessou a porta de entrada, porém, o repisar ininterrupto cessou abruptamente, parecia que a mente lhe concedera uma trégua piedosa. Era como se o subconsciente soubesse que, para lidar com o novo problema, não podia trazer para ali o anterior; tudo tinha o seu tempo e só podia ocupar-se de uma coisa de cada vez. Foi por isso com a cabeça inesperadamente limpa que seguiu direito ao gabinete da directora, a meio do corredor, e só parou quando viu o nome de Maria Flor assinalado numa pequena tabuleta pregada à madeira da porta.
"Posso?", perguntou, espreitando depois de bater.
A directora, sentada à secretária a consultar papéis, aco-lheu-o com um sorriso encantador.
"Faça o favor, professor." Fez um gesto para que ele se sentasse na cadeira diante da secretária. "Estava a ver que o senhor se tinha sumido da face da Terra."
Tomás acomodou-se no assento.
"Pouco faltou", comentou, estremecendo. "Estive ausente do país, onde vivi uma situação muito complicada, e só regressei hoje. Logo que saí do avião, em Lisboa, fui buscar o carro e vim direito aqui a Coimbra. Acabei de chegar."
"Eu reparei que o senhor não tem andado por cá."
O cliente encolheu-se na cadeira e baixou os olhos, ligeiramente envergonhado com o que se poderia pensar da sua ausência depois de ter deixado ali a mãe.
202
"Peço desculpa, mas foram obrigações profissionais", jus-tificou-se de novo.
Ergueu a cabeça, como se assinalasse que bastava de auto-recriminações. "A minha mãe? Como vai ela?"
"Fugiu."
Tomás arregalou os olhos. A informação atingira-o com a violência de uma bofetada.
"Como?"
"A sua mãe fugiu."
"Fugiu como?"
"É muito simples. Pegou nas coisas dela e saiu porta fora."
"Mas... mas vocês deixaram?"
A directora suspirou.
"O professor, o que poderíamos nós fazer? Não se esqueça de que tudo isto é novo para ela. A sua mãe estava habituada a uma determinada rotina e ao seu modo de vida, que lhe era muito familiar, e de repente viu-se transportada para um meio totalmente estranho, ainda por cima contra a sua vontade. Como era de esperar, reagiu mal."
Sentado na cadeira, Tomás começou a sentir a fúria cres-cer-lhe no peito como um vulcão prestes a irromper.
"Mas vocês deixaram-na sair?"
"Que eu saiba, professor, a sua mãe é adulta e mantém todos os seus direitos, incluindo a liberdade de movimentos. Se ela pegou nas suas coisas e saiu, o que podíamos nós fazer? Ela não é nenhuma prisioneira, pois não? Não foi condenada por nenhum tribunal, pois não?"
"Mas ela não pode andar por aí à solta, é um perigo para si própria. Onde está a minha mãe agora?"
Maria apontou para a porta.
"Está aqui."
"Perdão?"
"Está aqui no lar."
O cliente olhou para a directora, desconcertado.
"Desculpe, não estou a perceber. Não tinha dito que ela fugiu?"
"Disse e é verdade. Fugiu ao terceiro dia."
203
"E agora está aqui?"
"Sim, conseguimos trazê-la de volta, graças a Deus."
Tomás bufou de alívio.
"Ufa!"
"Tentámos falar consigo na altura, mas o seu telemóvel não se encontrava acessível. Nem imagina as vezes que lhe ligámos. Como sabíamos que a sua mãe era paciente do doutor Gouveia, lembrámo-nos de contactar o hospital e acabámos por falar com ele. Foi o doutor Gouveia que a localizou e a trouxe de volta."
"E como se sente ela agora?"
"Vai-se adaptando, felizmente. Quer ir vê-la?"
"Claro que sim", disse, erguendo-se de imediato. "Mas ela está bem, não está?"
"Está bem, tendo em conta os condicionalismos da situação e da idade, claro", respondeu a directora, mantendo-se sentada. "Era importante que o senhor cá tivesse estado para a acompanhar nos primeiros dias de integração aqui no lar."
"Sim, eu sei, mas acredite que me foi de todo impossível."
Tomás permaneceu um instante indeciso, sem saber se deveria sair ou sentar-se de novo. A postura da responsável do lar indicava-lhe que a conversa não estava terminada e talvez fosse melhor voltar para o seu lugar.