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Calaram-se um longo instante, dona Graça parecia confusa e tentava realinhar as memórias. A porta do gabinete abriu-se, quebrando aquele silêncio deprimido, e um vulto branco apareceu na sala de espera, enchendo a mãe de Tomás com um sorriso. O médico estendeu-lhe as mãos e assumiu uma expressão plena de bonomia.

"Graça, como vai isso?", cumprimentou Gouveia. "É sempre bom tê-la por cá!"

"Ah, doutor", disse ela. "Já nem me lembrava que tinha consulta consigo, 19

veja lá." Sorriu ao de leve. "Credo, esta minha cabeça anda mesmo despassarada, pareço uma galinha tonta." Baixou a voz, como se contasse um segredo. "Sabe o que é? Estou a ficar velha..."

"A Graça? Velha? Não me faça rir!"

"O doutor, sempre são setenta anos, não é?"

"E o que são setenta anos hoje em dia, hã?"

Dona Graça entrou no gabinete.

"Não brinque, doutor, não brinque."

O médico cumprimentou Tomás com um aceno e fechou a porta do gabinete.

Sentado na sala de espera, Tomás cruzou os braços e preparou-se para ali ficar durante um bom pedaço a aguardar o fim da consulta. Reparou na mesinha com as revistas e apanhou uma delas, que se pôs a folhear distraidamente.

O telemóvel tocou.

"Professor Noronha?"

Era um português quase perfeito, mas um leve sotaque traía a voz estrangeira.

"Sim?"

"O meu nome é Alexander Orlov e trabalho para a Interpol."

O homem calou-se, esperando que o seu interlocutor apreendesse esta informação.

"Sim?"

"Preciso de ter uma conversa consigo. Está disponível para jantar... digamos, amanhã?"

Tomás franziu o sobrolho, desconfiado. O que lhe quereria a Interpol?

"Qual é o assunto?"

"É uma questão de certa delicadeza. Se não se importa, gostaria de a expor pessoalmente, não ao telefone."

"Mas pode dar-me uma ideia do que se trata? Como deve calcular, sou uma pessoa ocupada."

"Com certeza", concordou a voz do outro lado da linha. "Professor Noronha, o nome de Filipe Madureira é-lhe de algum modo familiar?"

Tomás hesitou, surpreendido.

"Filipe Madureira?"

"Sim."

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"Bem... foi meu amigo no liceu de Castelo Branco."

"O Liceu... uh... Nuno Álvares, não é?"

"Sim, esse mesmo. Porquê? O que tem o Filipe?"

"O seu amigo anda desaparecido."

Aquela informação, na boca de um homem da Interpol, deixou Tomás intrigado.

"O que quer dizer com isso, desaparecido?"

"A Interpol precisa de falar com o seu amigo, mas ele desapareceu."

O historiador tentou avaliar a notícia. Era sempre desagradável saber que um amigo do liceu andava desaparecido, mas o facto é que Tomás não via Filipe há mais de vinte e cinco anos e não conseguia perceber o que lhe queria a Interpol a propósito dessa antiga amizade.

"Pois, isso é aborrecido", disse. "Mas não estou a perceber o que tem a ver comigo."

"Ainda não tem nada a ver consigo, professor Noronha, mas gostaríamos que tivesse." Inflectiu o tom da voz. "Encontramo-nos amanhã à noite? Vinte horas no Saissa, aquele restaurante em Oeiras, junto à Marginal."

"Mas espere", exclamou Tomás. "Não estou a perceber qual a relevância da nossa conversa. O que pretende você dizer com isso de que gostaria que o assunto tivesse algo a ver comigo?"

"A Interpol precisa da sua ajuda, professor Noronha."

"Para quê?"

"Vou dar-lhe duas pistas que, espero, tenham o condão de espicaçar a sua curiosidade."

"Diga lá."

"Dois assassínios e o Diabo."

Tomás ficou tão espantado que até olhou para o telemóvel.

"Como?"

"Até amanhã, professor Noronha."

A porta do consultório abriu-se e o doutor Gouveia acompanhou dona Graça até à sala de espera, ambos sempre a tagarelarem, a conversa rolando ao sabor das palavras trocadas entre dois velhos conhecidos.

"O Graça, aguarde aqui um pouco, está bem?", concluiu o médico, ajudando-a a sentar-se numa cadeira. "Preciso agora de ter uma palavra com o seu filho."

Tomás seguiu Gouveia até ao gabinete. Era um cubículo arejado, com uma 21

grande janela aberta para a cidade, os telhados vermelhos de Coimbra descendo pela encosta e resplandecendo ao sol, lá ao fundo o Mondego serpenteava pelas apertadas margens da velha urbe por entre renques de árvores.

O médico fez-lhe sinal para se sentar.

"A sua mãe está a tomar os comprimidos que lhe tenho receitado?", começou por perguntar.

Tomás contorceu os lábios.

"Olhe, doutor, para ser franco não sei."

"Você não controla isso?"

"Como quer o senhor que eu controle a medicação da minha mãe? Não se esqueça de que vivo em Lisboa, só venho cá a Coimbra duas vezes por mês..."

"Acha que ela tem tomado os comprimidos?"

Tomás inclinou a cabeça.

"O que lhe parece?"

O médico pegou numa caneta e brincou com ela na ponta dos dedos.

"Parece-me que não."

"Eu também suspeito que não."

Gouveia suspirou, pousou a caneta e inclinou-se para a frente, apoiando os cotovelos na secretária.

"Diga-me lá, Tomás. O que tem achado da evolução do estado da sua mãe?"

Os olhos verdes de Tomás perderam-se, por momentos, algures no casario para lá da janela do gabinete.

"Não acho grande coisa, doutor." Focou o médico. "O senhor conhece-a, não é? Ela sempre foi uma mulher alegre, muito activa, cheia de vida, sempre encarou as coisas de uma forma incrivelmente positiva, sempre teve uma grande força interior."

Fez uma careta. "Mas desde a morte do meu pai que as coisas mudaram muito e muito depressa."

"Como assim?"

"Olhe, primeiro começou por se esquecer de nomes e de pequenas coisas. Às tantas já não sabia em que mês andava nem qual o dia da semana. E agora fala de pessoas mortas

como se elas estivessem vivas. Ainda hoje, por exemplo, se pôs a chamar pelo meu pai, veja lá."

"Portanto, tem tido perda de memória. E há mais algum comportamento que se tenha alterado?"

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"Bem... quer dizer, começou a comer pouco e já notei que se vai deitar a qualquer hora. Isso parece-me bizarro. Às vezes passa o dia a dormir e a noite acordada, esse tipo de coisas."

"E os hábitos de higiene?"

"Ah, isso também se alterou, sim senhor. Deixou de se lavar com frequência.

Só notei isso noutro dia, quando cheguei de Lisboa. No momento em que a beijei reparei que ela cheirava mal." Esboçou um esgar de repulsa ao relembrar o sucedido.

"Foi um castigo para a pôr a tomar banho, nem imagina."

O médico fixou-o nos olhos.

"Você sabe que idade tem a sua mãe?"

Congelou um instante, enquanto fazia as contas.

"Tem setenta anos." Aquela idade, que na juventude lhe parecera tão avançada e agora nem por isso, ecoou-lhe na cabeça e deixou-o pensativo. "Não acha que é ainda um pouco cedo para... para isto?"

Gouveia assentiu.

"Sim, ela ainda é relativamente nova. Mas, sabe, isto da idade varia de pessoa para pessoa. Há quem tenha cem anos e esteja perfeitamente lúcido, e há quem...

olhe, há quem envelheça mais cedo. No caso da sua mãe, é evidente que esta degradação precoce está relacionada com a morte do seu pai."

"O senhor acha?"

"É evidente que há uma relação. Eu lembro-me que eles eram muito próximos. Quando os casais são muito unidos, o desaparecimento de um tem sempre um efeito devastador no que sobrevive."

Tomás baixou os olhos.

"Suponho que sim."

O médico afinou a voz.

"Oiça, Tomás, com ela a esquecer-se de tudo, a não tomar os comprimidos, a não se lavar, a passar os dias na cama... isso não o deixa preocupado?"