"Tem razão."
Estacaram diante da sala. A directora passeou os olhos da esquerda para a direita e fixou-se na figura sentada à janela.
"A sua mãe está ali", disse. "Antes que vá ter com ela, deixe-me lembrar-lhe uma coisa: nesta idade, estamos sempre a perder algo. "
"O que quer dizer com isso?"
"Os neurónios vão-se apagando, umas vezes mais depressa, outras mais lentamente. É a lei da vida. O que eu quero que você perceba é que, de cada vez que cá vier, pode encontrá-la diferente. E raramente será para melhor."
O sol acariciava as rugas que o tempo sulcara no rosto de dona Graça quando Tomás se inclinou e a beijou na face.
"Olá, mãe, está boa?"
Dona Graça ergueu os olhos verdes límpidos e prendeu-os no filho, que a observava com nervosa expectativa.
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"Pai", exclamou, abrindo os braços. "Pai."
Tomás olhou-a, embasbacado.
"Mãe, sou eu. O Tomás."
Ela pareceu admirada. Ficou um instante suspensa a olhar para o recém-chegado, quase indecisa, até que caiu em si.
"Ai, desculpa", disse, abanando a cabeça como se quisesse sacudir qualquer coisa. "Estou a ficar confusa. Parecias-me o meu pai." Acariciou-lhe o rosto. "És bonito como ele."
"Pois, herdei-lhe os genes."
"Ainda noutro dia o meu pai e a minha mãe me disseram que parecias um anjo."
O filho acomodou-se na cadeira vazia diante de dona Graça. Não havia dúvidas de que estava confusa, falava como se os pais ainda estivessem vivos.
"Então como se tem estado a dar por aqui?", perguntou, desviando a conversa.
"Tenho saudades de casa. Já disse ao teu pai que quero voltar."
As recordações misturavam-se todas. Na sua vivência, o marido permanecia vivo, provavelmente mais novo ainda.
"A mãe dorme bem?"
"Nem por isso. Entram-me no quarto umas pessoas estranhas, é uma maçada."
"São as empregadas, para ver se está tudo bem."
"Prefiro a Alzira, já estou habituada a ela." Era a empregada doméstica do tempo em que Tomás estudava no liceu. "Além do mais, cozinha melhor. As empregadas aqui deviam tirar um curso de culinária, como aqueles na televisão, sabes? Aquele do programa da... da Maria de Lurdes Modesto. Esses aí."
Tomás olhou em redor, observando os idosos sentados no salão. Uns dormitavam, outros tinham o olhar perdido no infinito, uma tricotava e três jogavam às cartas.
"A mãe ainda não arranjou amigas?"
"Claro que sim", disse ela. "Sabes quem é que encontrei aqui?"
"Não."
"A Deolinda. Lembras-te dela?"
"Não faço ideia de quem seja."
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"Claro que fazes! Conhecemo-la quando andávamos no liceu."
"O mãe, eu nunca andei no liceu consigo. Quando a mãe andava no liceu eu nem sequer tinha nascido."
Dona Graça reflectiu, tentando reordenar a memória.
"Tens razão, ando mesmo despassarada. Eu e o teu pai é que a conhecemos no liceu." Encolheu os ombros. "Pois olha, vim agora encontrá-la aqui."
"E como está ela?"
A mãe riu-se.
"Uma depravada", murmurou. "Aquela rapariga sempre foi uma Maria maluca e pelos vistos não se emendou. Aquilo está-lhe na massa do sangue, não há nada a fazer."
"Ah, sim? Porque diz isso?"
"Tu não imaginas as fitas que ela faz todos os dias. Valha-me Deus!"
"Diga lá."
Dona Graça inclinou-se e baixou a voz, como se estivesse a contar um segredo.
"Olha, anda a ver se catrapisca o enfermeiro."
"Qual enfermeiro?"
"Um rapaz novo que trabalha aqui. A Deolinda passa a vida a exigir que o enfermeiro lhe ponha creme no ânus, mas o médico já a viu e concluiu que não há problema nenhum com o ânus dela." Um risinho. "E a marota insiste. Diz que já não se fazem homens como antigamente, que são todos uns rabichos e exige que lhe ponham a pomada no ânus."
"Diabo da velha", sorriu Tomás.
Dona Graça olhou para o lado e estremeceu.
"Chiu", disse. "Ela vem aí."
O filho voltou a cabeça para a porta e viu uma idosa aproximar-se em passo ligeiro com uma chávena de chá na mão. Trazia um vestido cinza, a saia a arrastar-se pelo soalho.
"Mas quem é este belo rapaz que aqui está?", perguntou a recém-chegada, acercando-se da mesa.
Dona Graça afinou a voz.
"O Deolinda, deixa-te de disparates." Pousou a mão no braço do filho. "Este é o meu Tomás."
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Deolinda olhou-o dos pés à cabeça.
"Hmm... nada mau", disse, a voz insinuante. "Olha lá, rapaz, tu sabes pôr pomada numa senhora?"
XXVI
A tabuleta à saída da auto-estrada assinalava a familiar portagem de Alverca quando Tomás, uma mão no volante e a outra a ultimar os preparativos para a chamada, ajeitou o auricular e digitou os números.
O telemóvel tocou no outro lado da linha.
"Olá, professor", saudou a voz que atendeu. "Já está de volta?"
"Como vai, Orlov?"
"Ora, cheio de fome!", lamuriou-se o russo. "Ainda não jantei", suspirou.
"Então conte lá. Encontrou o seu amigo?"
"Sim."
"Onde está ele?"
"Não sei."
Orlov estalou a língua com desagrado.
"Oiça, professor", disse, num tom de infinita paciência. "O senhor tem de nos contar alguma coisa, não é? Afinal foi a Interpol que pagou todas as despesas da sua viagem.
Se pagámos, temos ao menos o direito de saber o que se passou."
"Sem dúvida", reconheceu Tomás. "O problema é que não vos posso dizer onde ele se encontra porque eu próprio não sei."
"Como assim? Não esteve com ele?"
"Estive."
"Onde?"
"Na Rússia."
Orlov riu-se.
"O seu amigo escondeu-se na minha terra?" Soltou uma risadinha. "Eu devia ter calculado. Sabe, quando li que ele tirou o curso em Leninegrado, pressenti que poderia ter fugido para lá. Bem vistas as coisas, sempre conhecia o sítio, não é? Mas depois não dei sequência a esse pressentimento, pensei cá para os meus botões: se estivesse no lugar deste Filipe Madureira, onde me iria esconder? No frio? Ia passar o resto dos meus dias no meio do gelo? Hmm... nem pensar!" Riu-se de novo. "Ia para as Caraíbas!"
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"Pois é, mas a verdade é que me encontrei com o Filipe na Rússia."
"Onde foi o encontro? Em Sampetersburgo?"
"Na Sibéria."
O russo assobiou do outro lado da linha.
"Não admira que ninguém tenha dado por ele este tempo todo", observou. "O
tipo foi para a Sibéria?"
"Sim."
"E ainda lá está?"
Tomás pigarreou.
"Oiça, Orlov. Não é possível termos esta conversa ao telefone. Quando podemos encontrar-nos?"
"Hoje."
"Hoje não posso. O meu avião aterrou esta manhã em Lisboa, fui a correr até Coimbra ver a minha mãe e estou agora de regresso a Lisboa. Sinto-me arrasado e preciso de dormir. Não imagina o que tem sido a minha vida nos últimos dias."
"Muito bem, então amanhã", disse Orlov. "Mas o senhor tem de me dar alguma coisa de palpável. O meu chefe em Lyon já me esteve a gritar aos ouvidos.
Está impaciente, quer resultados bem depressa e preciso de apresentar serviço."
"Diga lá onde nos podemos encontrar."
"Meio-dia no Victor, pode ser?"
"Victor? Quem é esse?"
"É um restaurante em Alcabideche, ao pé de Cascais. Conhece?"
Apesar da fadiga, Tomás não conseguiu conter um sorriso, tão previsível era Orlov. Muito espantado ficaria se, com aquele russo, não houvesse um restaurante metido na conversa.
O aroma quente da carne assada enchia o grande salão do Victor, onde algumas mesas já estavam ocupadas. Ainda era cedo, faltavam dois minutos para o meio-dia, mas os empregados afadigavam-se de um lado para o outro com travessas equilibradas nas mãos e garrafas de vinho tinto envoltas em guardanapos. O