ambiente era tranquilo, perfumado pelas essências deliciosas dos condimentos e pelo odor salivante dos alimentos ao lume; a meia-luz amarelada que alumiava os cantos parecia acariciar o barro da decoração, conferindo ao restaurante o aspecto acolhedor das adegas.
Tomás examinou os clientes num relance e, não identificando Orlov, 211
embrenhou-se no salão e meteu pela passagem esconsa à direita, desembocando no segundo salão. Deu com o vulto maciço do russo numa mesa ao canto, o corpanzil inclinado sobre um prato, gotas de transpiração a descerem-lhe pela face afogueada, a boca besuntada de gordura.
"Já está a comer?", perguntou o recém-chegado ao apro-ximar-se da mesa.
"Hmpf", grunhiu Orlov, levantando-se num susto, como uma criança apanhada em flagrante na despensa com a mão metida no frasco dos rebuçados.
"Olá, professor." Fez um gesto desajeitado na direcção dos pratos espalhados pela mesa. "Desculpe, mas não me aguentava de fome. Quando entrei aqui e senti este cheirinho... olhe, não resisti."
"Fez muito bem, não se preocupe", tranquilizou-o Tomás, ocupando o seu lugar à mesa. "A comida foi feita para ser comida."
"É servido?"
A mesa estava coberta com as entradas mais variadas, todos elas irresistivelmente deliciosas, formidáveis bombas de colesterol. Viam-se morcelas, chouriços, tâmaras em toucinho, presunto com melão, queijo da Serra amanteigado, ovas em azeite, amêijoas à Bulhão Pato, conquilhas, uma santola gratinada e uma garrafa de Dão já a meio, o copo ao lado com o vidro borrado de gordura.
"Ena, você trata-se bem!"
"Oh, faz-se o que se pode, faz-se o que se pode."
Tomás serviu-se de umas amêijoas, o que constituiu um sinal para Orlov se atirar de novo aos petiscos, mergulhando a colher nas entradas e reabastecendo o seu prato.
"A primeira coisa que quero fazer é dar-lhe conta de um homicídio", anunciou Tomás, indo direito ao assunto.
Orlov suspendeu momentaneamente a colher no ar; eram ovas pingando azeite.
"Um homicídio? Qual homicídio?"
"Fui para a Sibéria com uma rapariga chamada Nadezhda, uma amiga do Filipe que foi o meu contacto em Moscovo. Ela foi uma espécie de guia, percebe?
Acontece que, no regresso, fomos perseguidos por uns homens armados que a mataram."
"Que raio de história é essa? Você foi perseguido por homens armados?"
"Já lhe explico. Mas primeiro gostaria de lhe dar conta do homicídio. A rapariga foi morta numa floresta, junto à margem norte do lago Baikal e o corpo dela ainda lá deve estar."
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"Se é assim, a polícia russa já foi certamente retirar o cadáver."
"Não, porque tudo aconteceu num lugar ermo no meio da floresta e eu não alertei as autoridades."
"Ah, não? E porquê?"
"Ora, porque não queria mais complicações. Se eu fosse ter com a polícia, só saía da Rússia daqui a uns meses. E isto se saísse! Na volta ainda me acusavam do homicídio e eu acabava na prisão ou num campo de trabalhos forçados."
"Sim, não é impossível."
"Portanto, ao falar consigo estou a alertar a Interpol para o sucedido. Presumo que vocês possam falar com a polícia russa e eu estou disponível para prestar os esclarecimentos necessários."
Orlov fez um ar pensativo.
"Isso vai ser complicado", considerou. "Oiça, ponha-me tudo por escrito e eu vou enviar o assunto para Lyon. À margem disso, irei efectuar uns contactos informais com uns amigos meus da polícia russa para ver o que se pode fazer."
"Agradeço-lhe."
"Mas o que o senhor me está a contar deixa-me um pouco preocupado. Então houve homens armados que foram atrás de si e mataram a sua guia?"
"Sim."
"Quem eram esses tipos?"
"São provavelmente os mesmos que abateram o cientista americano na Antárctida e o espanhol em Barcelona. Ou são os mesmos, ou estão a mando da mesma pessoa ou organização. Para todos os efeitos, este homicídio encontra-se evidentemente relacionado com os assassínios que você está a investigar."
"Como diabo sabe você isso?"
"Estes tipos andavam atrás do Filipe."
"E então? Podia ser um ajuste de contas local. O seu amigo tem tido nesta história um comportamento altamente suspeito, se quer que lhe diga."
Tomás inspirou devagar, avaliando por onde deveria começar.
"Oiça, esta história é muito complicada", disse. "O Filipe fazia parte de um grupo de cientistas que estava a investigar o aquecimento global e a sua relação com os combustíveis fósseis. Dois desses cientistas foram assassinados em 2002, como sabe. Os outros dois, o Filipe e o tal Cummings, tiveram de se esconder para escapar aos assassinos."
"Isso é o que diz o seu amigo", observou Orlov, fazendo um esgar céptico.
"Quem me garante a mim que eles não tiveram de se esconder para escapar à 213
justiça? Hã? Se estão tão inocentes como afirmam, por que razão não se apresentaram ainda à polícia?"
"Pela simples razão de que a polícia não os pode proteger."
O russo riu-se com sarcasmo.
"Que disparate", exclamou. "Claro que pode." Bateu com o dedo na mesa, para enfatizar a sua ideia. "Se eles não se apresentaram à polícia, não tenha dúvidas, é porque não estão de consciência tranquila."
"Oiça, não é assim tão simples. Os assassinos estão a mando de uma organização muito poderosa. Se calhar é mais do que uma organização. São países."
"Países? Que história é essa?"
"É como lhe estou a dizer. Não há polícia nenhuma que consiga fazer frente aos interesses que estão em jogo."
"Diz quem?"
"Digo-lhe eu e diz o Filipe."
"Mas que interesses tão poderosos são esses?"
"São os interesses do maior negócio do mundo."
"A droga?"
"O petróleo."
"Os interesses ligados ao petróleo estão por detrás dos assassínios dos professores Dawson e Roca?", admirou-se Orlov. "Isso não faz sentido nenhum."
"Pelo contrário, faz todo o sentido", insistiu Tomás. "A descoberta da ligação entre o aquecimento global e os combustíveis fósseis põe a indústria do petróleo em grave perigo. Estão em jogo biliões de dólares e a sobrevivência de multinacionais e até de países. A política internacional tem sido ditada por estes interesses, com a indústria petrolífera a financiar campanhas presidenciais nos Estados Unidos e a ver os seus interesses estratégicos defendidos intransigentemente pela Casa Branca. Sem petróleo, as empresas petrolíferas não podem sobreviver. E sem petróleo acaba-se também o poder dos países do Médio Oriente. O que vão a Arábia Saudita e o Kuwait, por exemplo, exportar quando o mundo já não quiser o petróleo?" Arqueou as sobrancelhas. "Areia? Camelos?" Abanou a cabeça. "Sem petróleo, muitos países da OPEP deixam de ter futuro. E a minha pergunta é esta: como acha que esses países e essas multinacionais vão lidar, ou estão a lidar, com todos aqueles que põem em causa o seu futuro?
Acha que ficam quietos? Encostam-se a uma árvore e deixam correr o 214
marfim?" Inclinou a cabeça, como se estivesse a mostrar um outro caminho. "Ou fazem alguma coisa? Ou actuam para pôr fim à ameaça?"
Orlov mastigava duas tâmaras em toucinho, mas os olhos estavam fixados nos cantos do salão com uma expressão meditativa.
"O senhor acha mesmo que são os interesses do petróleo que estão por detrás de tudo isto?"