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"Claro que deixa! Por que razão pensa que marquei esta consulta consigo?"

"O que eu quero perguntar é o seguinte: acha que ela está em condições de permanecer sozinha em casa?"

"Eu acho que não."

"Então o que vai fazer para resolver o problema?"

"Arranjei-lhe uma mulher-a-dias. Ela vai lá cinco vezes por semana limpar-lhe a casa, lavar-lhe a roupa e preparar-lhe as refeições."

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"E acha que isso chega?"

Tomás encolheu os ombros, impotente.

"Eu acho que não, mas o que posso fazer? Não tenho modo de abandonar o meu trabalho em Lisboa e vir para cá tratar da minha mãe..."

"Nem eu estava a sugerir isso."

"Então o que me aconselha a fazer?"

O médico recostou-se no assento, voltou a pegar na caneta e recomeçou a girá-la entre a ponta dos dedos.

"Já considerou a hipótese de a pôr num lar?"

"Já considerou a hipótese de ir viver para um lar?" A pergunta foi feita de um modo quase casual, pouco depois de terem reentrado em casa. Tomás caminhava para a cozinha quando virou a cabeça e lançou a ideia, assim como se ela tivesse acabado de lhe ocorrer. Dona Graça, porém, sentiu-a como um soco desferido no estômago.

"Ir para um lar?"

"Sim, já pensou nisso?"

Tomás continuou a comportar-se com naturalidade. Abriu a porta do frigorífico e procurou um sumo. A mãe seguiu-o devagar e ficou à entrada da cozinha.

"O que queres dizer com isso?"

"O que quero dizer é que a mãe não pode ficar sozinha."

Fez-se um silêncio pesado.

"Tu estás a falar a sério?"

Tomás parou de vasculhar no frigorífico e olhou para a mãe.

"Não acha que é uma boa ideia?"

Dona Graça sentiu a revolta crescer-lhe do estômago, en-cher-lhe o peito e explodir-lhe no rosto.

"Uma boa ideia? Uma boa ideia?", vociferou, rubra de fúria. "Tu queres despachar-me para um lar, é isso? Tu queres..."

"Não, não, não é..."

"... desfazer-te de mim? Tu queres..."

"... isso, mãe. Não é isso. Tenha..."

"... desembaraçar-te assim da... da tua própria mãe?"

"... calma, tenha calma."

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A mãe chorava agora, as lágrimas a desenharem sulcos no seu rosto enrugado.

"Tu queres fazer-me isso a mim? A mim? A mim, que tratei de ti? A mim, que te alimentei, que te vesti, que te eduquei? A mim, que te dei tanto amor, tanto carinho, tanto de mim? A mim? Queres fazer-me isso a mim? A tua... à tua própria mãe?"

"Mãe, tenha calma, não é isso o que estou a dizer."

Dona Graça soluçou.

"É isso, é."

"Oiça, mãe. A mãe anda com a cabeça na lua, vive sozinha, esquece-se das coisas, não toma os comprimidos, come mal, já nem sequer se lava... Não percebe que é perigoso estar assim sem apoio nenhum? E se lhe acontece alguma coisa?

Quem lhe acode? Hã?"

"Ora, a dona Mercedes."

"A dona Mercedes só cá vem volta e meia fazer as limpezas. E se lhe acontece alguma coisa quando ela não está cá?"

"Telefono."

"Telefona? A quem?"

"Telefono ao... ao... àquele número de emergência."

"Está a ver? A mãe anda a esquecer-se de tudo. Nem sequer se lembra do número de emergência!"

"Não venhas cá com conversas."

"Não são conversas. Este é um problema muito sério."

Mais lágrimas escorreram-lhe pelo rosto.

"Tu queres é desembaraçar-te de mim, é o que é. De mim, que fiz tanto por ti!

Se não gostas de mim, olha, é melhor nem pores cá os pés, ouviste? Eu cá me desembaraço sozinha."

"Não diga isso."

"Digo, digo." Ergueu o dedo, peremptória. "Os filhos têm de tratar dos pais como os pais trataram dos filhos, ouviste?"

"Mas eu estou a tratar de si."

"Tratas uma ova! Queres é despachar-me para um lar, é o que queres." O

queixo tremia-lhe de indignação. "Eu fiquei com os teus avós aqui em minha casa até eles morrerem. Até eles morrerem, ouviste? No meu tempo, os filhos assumiam as suas responsabilidades. Não é como agora que tudo o que querem é a boa vida e 25

os velhos, ala!, que vão para o lar!"

"No seu tempo era diferente. A mãe não trabalhava e podia tratar dos seus pais." Bateu com a palma da mão no

peito. "Mas eu trabalho. Onde é que vou arranjar maneira de tratar de si?"

"Isso são desculpas!"

"Não são, não. A minha vida não me permite passar o tempo aqui, mas a mãe não está em condições de continuar a viver sozinha. A mãe precisa de ter pessoas perto de si para a ajudarem sempre que necessitar."

Dona Graça enxugou as lágrimas e encarou o filho com despeito.

"Se não queres tratar de mim, vai-te embora. Ouviste? Vai-te, que não preciso de ti."

Virou as costas e foi deitar-se.

Saiu à noite de casa da mãe com ar abatido; sentia-se o pior filho do mundo.

Ainda pensou em alterar os planos, pernoitar em Coimbra e não comparecer à aula da manhã seguinte, mas reconsiderou; o ano lectivo estava a terminar, tinha uma frequência marcada e não podia faltar às suas obrigações para com os alunos.

Precisava mesmo de ir para Lisboa.

Desceu o velho elevador do prédio e cruzou cabisbaixo a Praça do Comércio, abandonada àquela hora tardia, as esplanadas recolhidas e as portas fechadas, entregues à meia-luz dos candeeiros tristes. Não sabia bem o que fazer. Por um lado, tinha a convicção de que a mãe era dona de si própria, mulher adulta, senhora da sua vontade; se não queria ir para um lar, era um direito que lhe assistia, o que podia ele fazer? Mas, por outro, tinha consciência da situação frágil em que ela se encontrava, percebia perfeitamente que a mãe não estava em condições de tratar de si mesma. E

se lhe acontecia alguma coisa na sua ausência? Poderia alguma vez perdoar-se por nada ter feito no momento certo?

Percorreu a Baixinha sem prestar atenção aos transeuntes, tão embrenhado estava no problema. Bem, reflectiu, a verdade é que fizera alguma coisa para lidar com a situação; seguira o conselho do médico e sugerira-lhe o lar de repouso, ela é que não tinha aceitado. Mas Tomás duvidava que isso servisse para apaziguar a sua consciência em caso de algo vir a correr mal. E se lhe acontecia mesmo alguma coisa? Pois, tinha de a levar para lá, concluiu. Mas não era assim tão simples, logo acrescentou de si para si. O facto é que, se a mãe não queria ir para o lar, o que podia ele fazer? Arrastá-la para lá à força? Prendê-la contra a sua vontade? Não, considerou. Não, isso estava fora de questão. Mas o problema permanecia sem resposta.

O que fazer?

Passou diante da estação de comboios e atravessou a marginal, dilacerado 26

pelo dilema. Teve pena de não ter uma irmã ou de não estar ainda casado. As mulheres eram mais práticas, sabiam sempre como encarar estes casos delicados, tinham um jeito especial só delas. Mas ele era um homem e os homens são bons para a farra, não para lidar com este tipo de problemas. Mesmo que largasse o trabalho na faculdade e na fundação e dedicasse todo o seu tempo a tratar da mãe, possibilidade que só admitia enquanto mera conjectura, duvidava que fosse suficientemente competente para cuidar dela de modo adequado. Teria de a lavar, de a alimentar, de a vestir, de a passear, de passar todo o tempo com ela; não faria outra coisa. Abanou a cabeça. Pois, isso não podia ser.

Deu consigo ao pé do seu velho Volkswagen azul, sujo e com uma amolgadela junto ao farol dianteiro direito. O carro encontrava-se estacionado junto ao rio, as águas a regurgitarem a uns meros três metros de distância, na sombra que se abatia do outro lado do muro fronteiro à marginal.