Havia um amigo meu que dizia que, se o processo de extracção fosse um filme de Hollywood, o petróleo seria a estrela principal, o galã que atrai os espectadores ao cinema, e os papéis de actor e actriz secundários ficariam entregues ao gás e à água.
Na verdade, em linhas gerais um reservatório consiste em petróleo misturado com gás e um depósito de água assente por baixo. O gás funciona no petróleo como no champanhe: é o que lhe dá força, são aquelas borbulhinhas que o fazem mexer e lhe conferem vitalidade. O petróleo sem gás é como o champanhe sem gás, fica apenas um líquido inerte. São o gás misturado no petróleo e a água a empurrar em baixo 247
que fazem com que o depósito esteja cheio de pressão, um pouco como uma garrafa de champanhe agitada antes de ser aberta, estás a perceber?"
"Sim."
"Quando se faz o furo no depósito é como quando se tira a rolha da garrafa de champanhe. O petróleo salta cá para fora com grande pressão e é nessa altura que ocorre a extracção primária. O petróleo vem em grandes quantidades, é uma maravilha." Mudou a expressão do rosto, como quem diz que tudo o que é bom tem um fim. "O problema é que, uma vez feito o furo, ao fim de algum tempo a pressão começa a descer, não é?"
"Como o champanhe fora da garrafa..."
"Isso mesmo." Esticou o dedo e assinalou um ponto invisível no ar. "É aí que começam as chatices. A pressão põe-se a baixar e o petróleo deixa de jorrar com a mesma intensidade. Na verdade, até vai perdendo gradualmente força, uma vez que lá em baixo, e à medida que mais e mais petróleo sai, a pressão do depósito vai sempre baixando, até um ponto em que se torna inferior à pressão da superfície e o petróleo deixa de sair."
"O petróleo acabou?"
"Não, não acabou. Ainda há petróleo lá em baixo. O problema é que o depósito deixou de o empurrar para cima."
"Quando isso acontece, quanto petróleo já saiu?"
"No caso da extracção primária? Cerca de um quarto de todo o petróleo existente no depósito. O que significa que ficaram lá em baixo uns três quartos."
"E como é que se faz para ir buscar o resto?"
"Entra em acção a extracção secundária. Através do recurso à tecnologia, procura-se aumentar a pressão no depósito, de modo a fazer com que o petróleo volte a jorrar. Um dos métodos que se podem utilizar é lançar gás para o depósito, designadamente dióxido de carbono, que se mistura com o petróleo e o torna de novo enérgico, como o champanhe. Um outro método, muito utilizado na Arábia Saudita, é inserir água no depósito."
"Água? Eles misturam água com o petróleo?"
"Não, de modo nenhum. A água não é injectada no petróleo, mas nos depósitos de água que já existem por baixo do depósito de petróleo, estás a perceber? Com mais água a entrar, o depósito cresce, a água sobe e empurra o petró-
leo para cima. A consequência de tudo isto é que, à medida que o petróleo vai sendo extraído, é preciso injectar ainda mais água, de modo a manter elevada a pressão no reservatório. Só que este processo traz um novo grande problema."
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"Qual?"
"Chamam-lhe water cut, ou teor de água. Como se tem de injectar água nos depósitos para aumentar a pressão, a certa altura essa água começa a misturar-se com o petróleo, sinal de que o crude se aproxima do esgotamento. Na extracção primária, o petróleo vem tendencialmente puro, mas, à medida que a extracção secundária se processa e o depósito se esvazia, começam a aparecer doses de água misturadas no petróleo. Primeiro um por cento, depois dois por cento e por aí fora. É
isso o water cut. Um poço chega ao fim quando o teor de água engole o teor de petróleo. Diz-se então que o petróleo se afogou na água."
"Quer dizer, acabou."
"Não, não acabou. Normalmente só se consegue extrair metade do petróleo existente num depósito. A outra metade fica lá em baixo em cantos isolados, mas a sua extracção torna-se economicamente inviável e o poço é encerrado."
"Estou a ver."
O geólogo reabriu a pasta que mantinha pousada no regaço. Pegou em algumas folhas e mostrou-as a Tomás.
"Estes documentos são os relatórios técnicos da Aramco", disse. "Quase todos foram preparados por engenheiros da companhia saudita de petróleo, embora alguns tenham sido elaborados por consultores da empresa. Cada relatório analisa desafios específicos de um determinado campo petrolífero, identificando problemas operacionais que foram surgindo ou se foram acumulando."
"Isso onde? Naquele megagigante que mencionaste há pouco?"
"Em vários campos", precisou. "Os relatórios analisam o que se passa em vários campos." Indicou as posições dos depósitos no mapa da brochura. "Como eu te disse, Ghawar e Safaniya produzem, juntos, setenta e cinco por cento de todo o petróleo da Arábia Saudita. Mas, se juntarmos os outros dois supergigantes sauditas, Abqaiq e Berri, essa quota ascende a noventa e três por cento. Ou seja, há quatro campos petrolíferos que, em conjunto, produzem mais de noventa por cento de todo o petróleo da Arábia Saudita."
"Isso é incrível."
Filipe folheou os documentos que tinha nas mãos, como se procurasse especificamente um.
"Vejamos o que se passa com Abqaiq. Este campo começou a produção em 1946 e o seu petróleo sempre foi considerado de excelente qualidade, talvez o melhor que já existiu." Localizou a folha que procurava. "Analisando aqui este relatório, constata-se que Abqaiq cruzou o pico em 1973, tendo já produzido mais de setenta por cento das suas reservas." Acenou com a mão. "Portanto, adeus Abqaiq."
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Guardou a folha e procurou a seguinte. "O campo de Berri foi descoberto em 1964, um dos últimos supergigantes encontrados no reino, também com petróleo de primeira qualidade." Encontrou o documento páginas adiante. "Este relatório aqui mostra que a pressão do depósito de Berri desceu para valores atmosféricos em dez anos de exploração, altura em que entrou em acção a extracção secundária através de injecção de água. A coisa correu bem até 1977, quando a água se começou a misturar com o petróleo que jorrava cá para fora. O water cut foi subindo até ao ponto de afogar o petróleo em um quarto dos poços de Berri, em 1990, o que obrigou a Aramco a fechá-los. Este relatório revela que os problemas começaram então a multiplicar-se e em 1994 a produção tinha declinado mais de sessenta por cento. Em 2001 tornou-se claro que já só restavam pequenos segmentos de Berri onde o petróleo não se tinha ainda afogado em água." Arrumou o relatório. "Berri prepara-se para passar à história." Dedilhou mais umas folhas, procurando um outro relatório. "Agora Safaniya, de que já te falei. E o maior campo petrolífero offshore do mundo e o segundo mais produtivo da Arábia Saudita." Extraiu novas folhas da resma. "Entrou em produção em 1957 e o seu petróleo manteve-se relativamente limpo até ao final da década de 1980, altura em que começou a aparecer areia no crude, sinal de que a pressão estava a baixar perigosamente. A água também apareceu, crescendo ao ponto de o water cut se tornar muito elevado na maior parte do campo em 2001."
"Qual é a percentagem?"
"Em Safaniya? Alguns poços já chegaram aos cinquenta por cento de water cut."