"Bolas!"
"Safaniya encontra-se claramente em declínio, meu caro. O seu pico foi cruzado por volta de 1980 e os relatórios mostram que os problemas de água e areia tendem a agravar-se." Guardou as folhas na resma. "Ou seja, o que estes relatórios dizem é que os três maiores supergigantes da Arábia Saudita, Safaniya, Abqaiq e Berri, já cruzaram o pico e estão em declínio."
"Resta o grandalhão."
"Sim, resta Ghawar."
Tomás indicou com os olhos a pasta de cartolina.
"O que dizem esses documentos aí sobre esse campo?"
O geólogo localizou novas folhas.
"Ghawar é tão grande que todo o reservatório foi dividido em áreas regionais, como Ain Dar, Shedgum, Uthmaniya, Hawiya, Haradh e outras. Consequentemente, a maior parte dos relatórios concentra-se na análise de diferentes aspectos destes diversos poços", observou, dedilhando o papel. Indicou um documento. "Este relatório, por exemplo, estuda a misteriosa inclinação do depósito, em particular na 250
zona de contacto entre a água e o petróleo." Um segundo documento. "Este aqui aborda os problemas de injecção horizontal na secção Árabe D." Mais um. "Aqui as atenções estão voltadas para os intervalos de permeabilidade." Ainda outro. "Olha, este tem uma simulação numérica que procura compatibilizar a informação sobre a pressão dos poços horizontais em diferentes tipos de heterogeneidades."
Crescendo de impaciência, Tomás espreitou os papéis.
"Essa conversa é chinês para mim."
"Sim, o jargão é eminentemente técnico."
"Traduzido por miúdos, o que dizem esses relatórios?"
Filipe parou de folhear os documentos amontoados na resma.
"Temos aqui múltiplas análises de diferentes aspectos das operações em Ghawar", disse, fitando o amigo. "Repara, nenhum destes relatórios apresenta uma visão de conjunto. É a soma de todos eles que nos revela uma imagem relativamente clara do que se está a passar neste grande colosso."
"E que imagem é essa?"
O geólogo consultou o relógio e, espantado com as horas, interrompeu bruscamente a conversa.
"Casanova, já se faz tarde", exclamou num sobressalto, subitamente apressado. "Temos de ir."
"Ir?", admirou-se Tomás. "Ir onde?"
Ergueu o braço e chamou a atenção do empregado. Quando o australiano fez tenção de se aproximar, fingiu que assinava no ar e o empregado entendeu; era o sinal para trazer a conta, e depressa.
"Tenho de ir ao quarto arrumar a mala e depois vamos sair da cidade."
"Onde vamos nós?"
"Para longe. Aviso-te já de que nem pensar em passarmos pelo teu hotel para ir buscar as tuas coisas."
"Porquê?"
"Ora, por medida de segurança. Depois do que aconteceu na Sibéria e de teres hoje sido seguido aqui em Sydney, não podemos correr riscos adicionais, não te parece? Terás de desaparecer comigo sem deixar rasto e é por isso que vais ter de deixar tudo no hotel até ao teu regresso."
"Mas onde vamos nós afinal?"
251
"Vamos ter com o James."
"O teu amigo de Oxford?"
"Sim, ele está cá."
Fez-se luz na mente de Tomás.
"Ah, bom. Já estou a perceber porque vieste para a Austrália." Soergueu uma sobrancelha, intrigado. "Ele está aqui em Sydney?"
"Não."
"Então está onde?"
"Já vais ver."
XXXI
A conta veio numa pequena bandeja de prata e Tomás insistiu em pagar; afinal aquela despesa acabaria por ser coberta pela Interpol. Levantaram-se os dois, saíram do Avery's Bar e dirigiram-se para a zona dos elevadores, no luxuoso lobby do hotel.
"Ainda não respondeste à minha pergunta", insistiu Tomás.
"Já te disse que na altura própria saberás para onde vamos."
"Não é isso, idiota."
"Então qual é a pergunta?"
"Estávamos a falar nos campos gigantes da Arábia Saudita", lembrou. Fez um sinal na direcção da pasta de cartolina que o amigo trazia na mão. "Disseste que os depósitos supergigantes já cruzaram o pico de produção, mas ainda não me contaste o que revelam esses relatórios sobre o grandalhão."
"Ah", percebeu Filipe. "Ghawar?"
"Sim. O que se passa nesse campo?"
Chegaram diante dos elevadores e entraram num que já tinha as portas escancaradas. O geólogo carregou no quinto andar e as portas fecharam-se para a curta viagem.
"Como já te disse, Ghawar começou a produzir em 1951 e, durante uma década, o petróleo jorrou livremente do seu depósito sem que fossem necessários métodos especiais de extracção. No final da década, porém, os reservatórios come-
çaram a registar alguma descida de pressão. Para responder ao problema, a Aramco iniciou um programa de injecção de gás no sector de Shedgum. Quando a década de 1960 começou, e perante o agravar da queda de pressão, foi lançado um novo 252
programa, desta vez injectando água nos flancos dos reservatórios. A situação ficou enfim controlada, mas só por alguns anos. Na década de 1970 apareceu água no petróleo que saía dos poços de Ghawar."
"A sério?"
Filipe inclinou a cabeça, como se a surpresa do amigo fosse despropositada.
"Casanova", disse. "Ghawar esteve vinte anos a produzir petróleo seco. Isso é muito bom."
"Ah, está bem. Julguei que o aparecimento de água fosse grave."
"O aparecimento de água é grave."
Tomás pareceu desconcertado, sem saber o que pensar.
"Desculpa, pensei que tinhas dito que não havia problema."
Um tim discreto assinalou a chegada do elevador ao quinto andar. As portas reabriram-se e saíram ambos para o corredor.
"O aparecimento de água na extracção é sempre uma coisa grave", disse Filipe, sem perder o fio à meada. "Isso não impede que o facto de um campo andar vinte anos sem extrair água seja bom. Foi excelente, sem dúvida. O problema é que as coisas boas não duram para sempre, não é?"
"Estou a perceber."
"A produção de Ghawar ao longo dessa década disparou, passando de milhão e meio de barris diários em 1970 para cinco vírgula sete milhões diários em 1981. A partir dessa altura, o consumo mundial baixou e, em resposta, a Aramco diminuiu intencionalmente a produção neste campo mega-gigante. O sector de Haradh, por exemplo, parou por completo, num esforço para descansar os reservatórios."
"Poupar, queres tu dizer."
"Descansar", insistiu o geólogo. "Sabes, quanto mais petróleo um campo produz, mais a pressão dos seus reservatórios baixa. Um modo de combater o problema é parar a produção, o que permite aumentar a pressão de forma natural.
Foi isso o que os Sauditas fizeram a partir de 1982. Começaram a descansar os campos petrolíferos, tentando recuperar a pressão perdida."
"E conseguiram?"
"Um pouco, sim. A pressão aumentou e os problemas com a água diminuíram ligeiramente, mas nada de decisivo." Acariciou a pasta de cartolina que tinha na mão. "Estes relatórios revelam que os problemas com a água em breve regressaram, e em força."
"Estás a referir-te ao teor de água?"
"Sim, ao water cut."
253
"Qual foi a evolução do problema?"
Pararam diante de uma porta e uma ficha magnetizada materializou-se entre os dedos de Filipe. Introduziu-a na ranhura e a porta do quarto fez clique.
"Como já te disse, a água apareceu em Ghawar na década de 1970", indicou, entrando no quarto. "Desde então a sua percentagem em relação ao petróleo não parou de aumentar... e a uma velocidade alarmante."