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"Sim, Luís Cariano."

"Ó doutor, eu esta noite tenho um jantar em Lisboa", disse o paciente. "Acha que vai dar para ir ou terei de desmarcar?"

"Pode ir, pode." Consultou o relógio. "Deixe cá ver... são oito horas, não é?

Olhe, tenciono dar-lhe alta ao princípio da tarde. Quero tê-lo a manhã toda aqui, para verificar se está tudo nos conformes, e depois do almoço deixo-o ir à sua vida."

"Ah, maravilha."

"Mas vá com calma, ouviu? Não o quero cá outra vez."

A enfermeira já levava o tabuleiro com o almoço consumido e Tomás calçava os sapatos e preparava-se para abandonar o quarto da clínica quando o telemóvel tocou.

"Olá, Tomás. Daqui Gouveia."

Caramba, pensou Tomás. Como diabo teria o médico de família sabido que ele fora hospitalizado naquela clínica? Bem, a comunicação entre médicos deve ser expedita, concluiu.

"Bom dia, doutor. As notícias correm depressa, hã?"

"Neste caso, a notícia veio ter comigo", observou Gouveia do outro lado da linha. "Aliás, está mesmo na sala aqui ao lado."

Tomás franziu o sobrolho, sem entender aquele comentário.

"A notícia está na sala aí ao lado? Não estou a perceber..."

"Ó homem, é a sua mãe."

"A minha mãe?"

"Sim, está aqui, na sala ao lado."

"Onde? No hospital?"

"Pois, vieram cá trazer-ma."

Tomás sentiu-se alarmado.

"Levaram a minha mãe ao hospital? O que se passa? O que tem ela?"

"Não tem nada, ela está bem", apressou-se a esclarecer o médico, procurando tranquilizá-lo. "Ou melhor, tem o mesmo de sempre. Está a perder faculdades."

Sem saber ainda o que pensar, Tomás sentou-se na cama.

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"Diga-me lá, doutor, o que se passa?"

"A sua mãe perdeu-se. Ao que parece, saiu esta manhã para ir às compras e, quando vinha da mercearia, não conseguiu encontrar a casa. Pôs-se a deambular pela Baixinha e veio dar ao Largo das Olarias. Parecia confusa e levaram-na para a esquadra. Da esquadra mandaram-na aqui para o hospital e a minha enfermeira deparou com ela nas urgências e veio trazer-ma."

"Porra", exclamou Tomás, levando a mão direita à cabeça. "Ela está bem?"

"Sim, está bem. Já estive a conversar com ela, mas ainda me parece um pouco confusa."

"Que chatice! E agora?"

Ouviu Gouveia suspirar do outro lado.

"Oiça, Tomás, eu já lhe disse o que tem a fazer, não disse?"

"Doutor, eu conversei ontem com ela, logo que chegámos a casa. O senhor nem imagina a fita que me fez."

"Imagino, imagino. Eu também lhe falei no assunto há pouco e ela teve uma fúria incrível. Diz que todos a querem despachar."

Tomás ergueu os olhos para cima, aliviado por não ser o único a ouvir as queixas da mãe. Talvez assim o médico compreendesse melhor o seu dilema.

"Está a ver? O que hei-de eu fazer?"

"Vai ter de a levar, Tomás. Ela não está em condições de viver sozinha."

"Mas como, doutor? Ela não quer ir..."

O médico respirou fundo.

"Oiça, Tomás", disse. "É muito arriscado deixá-la sozinha. As coisas não vão evoluir para melhor, percebeu? Ela está a mostrar-se desorientada e isto é um processo degenerativo. A sua mãe precisa de ajuda, não pode permanecer entregue a si própria. Além do mais, num lar ela tem outras pessoas com quem conviver, só lhe vai fazer bem."

"Acredito, acredito. Mas o problema mantém-se. Como vou colocá-la num lar se ela não quer ir?"

"Tem de ir."

"Mas como é que eu faço isso? Ela não quer!"

"Você tem de conversar com ela e convencê-la."

Tomás riu sem gosto.

"Conversar com ela? E como é que eu faço isso? Ela não quer ouvir e põe-se 32

num estado de... de exaltação. Como é que eu a convenço?"

Gouveia pigarreou.

"Oiça, o que lhe vou dizer a seguir não é como médico, entendeu? E como amigo."

"Diga lá."

"Sabe que, à medida que a idade avança, os velhos entram em regressão e, de certo modo, retornam à infância, não sabe?"

"Sei."

"Então imagine que a sua mãe é uma criança."

"Sim."

"Ela é uma criança e não quer ir para a escola. Você sabe que ela precisa de ir à escola, que isso é bom para o seu futuro, mas ela não sabe isso, pois não? Apenas sabe que não quer ir para a escola, prefere ficar em casa a brincar com as bonecas.

Perante essa recusa, o que faz você? Satisfaz-lhe o capricho ou escolhe o que é bom para ela?"

"Não é a mesma coisa."

"Responda à minha pergunta. Se a criança não quer ir para a escola, o que faz você? Não a leva? Deixa-a ficar sempre em casa a brincar? Nunca mais vai aprender? Prejudica o seu futuro só para não a contrariar naquele instante?"

"Claro que a levo à escola."

"Nem que seja à força?"

"Sim."

"Então tem aí a sua resposta."

III

O aroma salgado da maresia enchia o restaurante, refrescante e vigoroso, acompanhando o marulhar reconfortante e cadenciado das ondas no laborioso vaivém sobre a praia. Tomás espreitou pela janela e vislumbrou o vulto esbranquiçado da espuma colar-se à areia, dava a impressão de algodão doce preso ao açúcar; mas o mar permanecia invisível, era de um negro profundo que se confundia com a noite, cortado pelo foco intermitente do farol do Bugio e pelos pontos iluminados dos navios que, no horizonte escondido, deslizavam docemente pela boca do Tejo. Os candeeiros públicos enchiam de luz a praia de Oeiras, quase como se fosse dia, eram pequenos sóis a rasgar a noite; o seu clarão revelava-se forte para a curta língua de areia, impotente porem diante da imensa treva dura do oceano.

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Olhou para o relógio; passavam quinze minutos das oito. vem atrasado, pensou. Mordiscou mais um rissol de camarão e manteve os olhos presos no manto escuro das águas, embalado pelo rumor ritmado das ondas na sua incansável valsa com a praia.

"Professor Noronha?", perguntou a voz com o leve sotaque.

Era um homem corpulento, dono de um abdómen enorme, e trazia uma pasta velha pendurada na mão; tinha um cabelo loiro fino, com entradas no topo da testa, e densos olhos azuis, um papo inchado sob o queixo, como um sapo.

"Sim?"

"Peço desculpa pelo meu atraso", disse, quase ofegante. Estendeu a mão sapuda. "Alexander Orlov, da Interpol. Os meus amigos chamam-me Sacha."

Cumprimentaram-se e Orlov pousou a pasta debaixo da mesa e sentou-se com dificuldade, a cadeira era quase estreita de mais para o seu corpanzil.

O empregado aproximou-se e fez uma vénia na direcção do recém-chegado.

"Boa noite, senhor Orlov. Quer pedir já?"

Orlov era, pelos vistos, um conhecido da casa. O volumoso cliente pegou no menu que lhe era estendido e passou os olhos superficialmente pelas propostas do restaurante. Quase fez o pedido de imediato, mas calou-se a tempo e mirou Tomás.

"Já escolheu?"

"Não conheço bem os pratos."

"Recomendo a santola recheada. É uma delícia."

"Muito bem", aceitou Tomás. "Venha a santola."

"E vinho verde branco muito frio", acrescentou Orlov. Encarou Tomás em busca de aprovação. "Concorda?"

"Vamos a isso."

O empregado afastou-se e Orlov agarrou-se aos acepipes e engoliu num instante três rissóis, dois croquetes e dois pães barrados com creme de atum.

"O que tem na cabeça?", perguntou, reparando no penso que Tomás trazia colado à nuca.

O historiador tocou levemente no penso.

"Isto? Oh, não é nada. Tive um pequeno acidente de viação, só isso."

"Não é grave, espero."

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"Não, não é grave."

Orlov meteu duas chamuças à boca.

"Suponho que tenha ficado surpreendido com o meu telefonema", disse, a voz quase abafada pela boca cheia.