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Os olhos do monstro continuavam fitando-o, fria e pacientemente. Delicadamente, como a tromba de um elefante, um daqueles longos tentáculos laçadores emergiu da superfície e foi galgando a tela em direção às pernas de Bond. Tocou num de seus pés, e Bond sentiu o áspero beijo daquelas ventosas. Não se mexeu. Não ousava abaixar-se e afrouxar o enlaçamento de seus braços à volta do arame. Docemente as ventosas entraram em ação, experimentando o rendimento daquela presa. Não era bastante. Como uma gigantesca lagarta, o tentáculo foi subindo por sua perna. Parou à altura do joelho ensangüentado e deteve-se, interessado. Os dentes de Bond estalaram com a dor. Ele bem podia imaginar a mensagem que tinha descido por aquele tentáculo até o cérebro do animaclass="underline" sim, é bom para comer-se! E a ordem de retorno ao tentáculo: então traga-o.

As ventosas continuaram subindo pela coxa. A extremidade do tentáculo se aflou e em seguida dilatou-se a ponto de quase cobrir toda a espessura da coxa de Bond. Depois reduziu-se à grossura de um pulso. Aquele seria o alvo de Bond. Apenas teria que agüentar a dor e resistir ao horror daquela acometida, esperando que esse pulso chegasse ao alcance de um golpe.

* *

Uma brisa, a primeira suave brisa da madrugada, soprou sobre a superfície metálica da enseada, levantando pequenas ondas que iam beijar a rocha do penhasco. Um bando de corvos marinhos alçou vôo da guaneira, quinhentos pés acima da enseada, e cacarejando suavemente, avançou em direção ao mar. Quando as aves passaram sobre a enseada, o barulho que as tinha perturbado chegou aos ouvidos de Bond — o tríplice apito de um navio, que indica estar a embarcação pronta para receber a carga. Aquele som chegava do lado esquerdo de Bond. O cais deveria estar situado a pequena distância contornando o braço setentrional da enseada. O navio procedente de Antuérpia tinha chegado. Antuérpia! Uma região do mundo exterior — um mundo que estava a um milhão de quilômetros de distância, fora do alcance de Bond — com certeza para sempre fora de seu alcance. Exatamente para além daquele braço rochoso a tripulação estaria no refeitório, tomando o seu desjejum. O rádio estaria tocando. Haveria o chiado do toicinho defumado e ovos na frigideira, o cheiro do café...

* * *

As ventosas estavam em sua coxa. Bond podia ver dentro daqueles cálices córneos. Um cheiro de maresia estagnada chegou-lhe às narinas, quando aquela mão vagarosamente serpenteou para cima. Seria muito duro o tecido gelatinoso cinza-escuro, por trás daquela mão? Deveria usar agora a faca? Não, o golpe deveria ser rápido e seguro, atingindo toda a espessura, como se se cortasse uma corda. Não importaria que a sua própria pele fosse atingida.

Agora! Bond lançou um rápido golpe de vista àqueles dois enormes olhos, lá embaixo, tão pacientes e tão negligentes. Nesse momento, o outro tentáculo elevou-se da superfície da água e avançou em direção ao seu rosto. Bond recuou a cabeça e a mão se enroscou num fio de arame diante de seus olhos. Num segundo aquela garra se deslocaria para um braço ou ombro, e ele estaria liquidado. Agora!

O primeiro tentáculo estava sobre suas costelas. Quase sem fazer pontaria, a mão de Bond que empunhava a faca caiu rapidamente para baixo e transversalmente. Sentiu a lâmina afundar naquele pudim carnoso, e quase deixou que ela escapasse de sua mão, quando o tentáculo ferido chicoteou pelo ar, desaparecendo na água. Por um momento o mar foi agitado à sua volta. Agora, o outro tentáculo abandonou o arame e agarrou-se ao seu ventre. A mão aflada prendeu-se como uma sanguessuga, com toda a força de sua sucção furiosamente aplicada. Bond gritou ao sentir o contacto daquelas ventosas em sua carne. Golpeou loucamente, mais e mais. Por Deus, o seu estômago estava sendo arrancado para fora! A tela agitou-se com a luta. Aos seus pés a água fervilhava e espumava. Ele teria que ceder. Um derradeiro golpe, desta vez nas costas daquela mão disforme. Deu resultado! A mão se agitou no ar e desceu serpeante, deixando vinte círculos vermelhos sangrando em sua pele.

Bond não tinha tempo para se preocupar com aquilo. Agora a cabeça do monstro tinha emergido, e os seus olhos brilhantes fixavam-se nele, avermelhados, enfurecidos, e a floresta dos tentáculos sugadores começava a envolver-lhe os pés e as pernas, dilacerando-lhe as roupas, para logo retornar aos seus membros. Bond estava sendo arrastado para baixo, polegada por polegada. O arame estava penetrando em suas axilas. Podia até mesmo sentir a sua espinha sendo distendida. Se ele continuasse resistindo seria partido ao meio. Agora, os olhos e o grande bico triangular estavam fora d’água, e o bico procurava o seu pé. Havia uma esperança, apenas uma!

Bond meteu a faca entre os dentes e sua mão procurou o gancho do chuço de arame. Agarrou aquela arma, e desdobrou-a com as suas duas mãos. Teria que soltar um dos braços para poder abaixar-se e se aproximar do alvo. Se falhasse, entretanto, seria reduzido a pedaços sobre a tela.

Agora, antes que morresse com a dor! Agora, agora! Bond deixou todo o seu corpo escorregar por aquela escada de arame, para baixo, e desferiu uma violenta estocada. Pôde ver que o pontaço de sua lâmina penetrava pelo centro de um enorme globo ocular negro, e imediatamente todo o mar se intumesceu para ele, como uma fonte de negrume, enquanto seu corpo se mantinha pendurado de cabeça para baixo, seguro pelos joelhos, com o rosto apenas uma polegada acima da superfície.

Que teria acontecido? Teria ficado cego? Não podia ver nada. Seus olhos estavam ardendo e havia um gosto horrível de peixe podre em sua boca. Contudo, podia sentir o arame cortando-lhe os tendões dos joelhos. Então devia estar vivo! Estonteado, Bond deixou que o chuço caísse de sua mão, e procurou o arame mais próximo. Depois, agarrou-se com a outra mão um pouco mais acima, e, assim, vagarosamente, foi-se alçando até que conseguiu sentar-se no cabo superior da cerca. Clarões de luz chegaram-lhe aos olhos. Passou uma das mãos pelo rosto. Agora podia ver. Fixou a sua mão: estava negra e pegajosa. Olhou para o seu corpo: estava também coberto por um lodo negro, e o preto tingia o mar numa extensão de vinte metros à sua volta. Então Bond compreendeu: o polvo ferido tinha esvaziado a sua bolsa de tinta contra ele.

Mas onde estava o monstro? Voltaria? Bond esquadrinhou o mar. Nada, nada além da enorme mancha negra que se continuava ampliando. Nem uma só ondulação! Então, nada de esperar! Fugir dali o mais depressa possível! Ansiosamente, Bond olhou para a direita e para a esquerda. Para a esquerda era na direção do navio, mas também na direção do Dr. No, enquanto para a direita seria para o nada. Para instalar aquela tela de arame, os trabalhadores deviam ter vindo da esquerda, na direção do cais. Devia haver algum caminho até ali. Bond começou a se deslocar frenèticamente pelo cabo superior, em direção à rocha, a vinte metros de distância.

O espantalho negro e sangrento movimentava os braços e pernas quase automaticamente. O aparelho pensante e sensorial de Bond já não fazia mais parte de seu corpo. Movia-se ao lado de seu corpo ou acima dele, mantendo apenas o contato necessário para puxar os cordéis que faziam o boneco trabalhar. Bond era como um verme secionado, cujas duas metades continuassem arrastando-se para a frente, conquanto a vida os tivesse abandonado para ser substituída pela vida ilusória dos impulsos nervosos. Apenas, no caso de Bond, as duas metades ainda não estavam mortas. A vida tinha somente se ausentado delas. Tudo quanto ele precisava era um grama de esperança, um grama de confiança, de convicção de que ainda valeria a pena tentar sobreviver.

Bond chegou à rocha, e lentamente desceu pela tela até a última malha. Contemplou vagamente o brilho palpitante da água. O mar estava negro e impenetrável. Deveria arriscar-se? Sem dúvida! Não podia fazer nada enquanto não tivesse lavado aquela camada de lodo e sangue, sem falar do horrível cheiro de peixe. Sombriamente, fatalisticamente, ele tirou os farrapos de sua camisa e calças, pendurando-os no cabo. Olhou para baixo, para seu corpo marrom e branco, salpicado de vermelho. Instintivamente, procurou sentir seu pulso, que se apresentava lento mas regular. As firmes palpitações de vida reanimaram o seu espírito. Por que diabo estava ele se lamuriando? Estava vivo. As feridas e machucaduras em seu corpo não eram nada — absolutamente nada. Eram horríveis, mas nada estava quebrado. Por dentro do invólucro maltratado, a máquina estava trabalhando serena e seguramente. Cortes superficiais e esfoladuras, recordações sangrentas, cansaço mortal — estes seriam ferimentos dos quais se riria uma enfermeira experiente. Para a frente, seu bastardo! Para a frente! Limpe-se e levante-se. Conte as suas bênçãos. Pense na jovem. Pense no homem que você deverá encontrar e matar. Agarre-se à vida como se agarrou à faca entre os dentes. Acabe com esta autopiedade. Para o diabo com o que acaba de acontecer! Para dentro d’água e lave-se!