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Wendy disse-me que o sangramento vinha de um dos seus dentes, e eu acredito firmemente que quem lhe fez isto ao rosto fosse capaz de lhe partir um.

– É da minha medicação – diz-me. – Dei uma queda e tomo anticoagulantes. Faz com que facilmente forme nódoas negras.

Esta mulher já se viu ao espelho? Está realmente a tentar dizer-me que isto se deveu a uma quedai

Veste uma camisa de noite cor-de-rosa às flores e, tal como a casa de banho, a frente está manchada de sangue. E nem sequer é a primeira camisa de noite ensanguentada que vejo desde que aqui estou.

– Tem de ir a um hospital – consigo dizer.

– A um hospital? – repete, estremecendo. – E o que fariam eles, ao certo?

– Verificar se tem ossos partidos.

– Não tenho. Estou bem.

– E depois pode denunciar isto – acrescento.

Wendy Garrick fita-me através de uns olhos margeados de hematomas. Respira fundo e retrai-se. Pergunto-me se terá uma costela partida. Não me surpreenderia.

– Oiça bem, Millie – diz, em voz baixa. – Não faz ideia daquilo com que está a lidar aqui. Não quer envolver-se nesta situação. Tem de se afastar e de me deixar em paz.

– Wendy...

– Falo a sério. – Os seus olhos pisados dilatam-se e, pela primeira vez, vejo neles verdadeiro medo. – Se sabe o que é bom para si, tem de fechar esta porta e sair daqui.

– Mas...

– Tem de se afastar, Millie. – Há agora uma urgência terrível na sua voz. – Não faz ideia. Simplesmente afaste-se.

Abro a boca para protestar, mas, antes que o possa fazer, já me fechou a porta na cara.

A mensagem é absolutamente clara. O que quer que esteja a acontecer nesta casa, Wendy não quer a minha ajuda. Não quer que me intrometa. Quer que me meta na minha vida.

Infelizmente, nunca tive muito jeito para isso.

21

Em 2007, um prestigiado violinista chamado Josh Bell, que tinha recentemente esgotado um concerto com bilhetes ao preço médio de algumas centenas de dólares cada, fez-se passar por músico de rua. Foi para uma estação de metro em Washington, de calças de ganga e boné de beisebol, e tocou a mesma exata música que no seu concerto, num violino artesanal avaliado em mais de três milhões e meio de dólares.

– Quase ninguém parou sequer para ouvir – explica o Dr. Kindred ao auditório cheio de estudantes. – Na verdade, quando ocasionalmente as crianças paravam, os pais destas agarravam-nas e faziam-nas seguir caminho. Este homem esgotou um concerto em Boston e, nesse dia, só cerca de cinquenta pessoas pararam durante tempo suficiente para depositar um dólar no estojo do seu violino. Como explicam isto?

Após alguma hesitação, uma rapariga na fila da frente põe a mão no ar. Está sempre ansiosa por responder a perguntas.

– Acho que, em parte, foi por a beleza ser mais difícil de percecionar quando num cenário singelo.

Todos os dias apanho o metro do Bronx para a cidade e é frequente ver pessoas a tocar os seus instrumentos enquanto espero pela sua chegada. A estação mesmo junto ao meu prédio tresanda a urina, por razões em que prefiro não pensar, mas, se houver alguém a tocar música enquanto espero, já não é assim tão mau.

Eu teria parado para ouvir Josh Bell. Poderia até ter deixado um dólar no estojo do seu violino, apesar de precisar de cada dólar que tenho.

– Muito bem – diz o Dr. Kindred. – Algum outro possível fator em jogo?

Hesito por um momento antes de pôr a mão no ar. Geralmente, não participo nas aulas porque tenho cerca de dez anos a mais do que a pessoa mais velha na sala (com exceção do professor). Mas mais ninguém parece estar a responder.

– Ninguém quis ajudá-lo – afirmo.

O Dr. Kindred assente e acaricia a barba no seu queixo.

– O que quer dizer com isso?

– Bem... – digo. – Ele tinha um estojo de violino com dinheiro no interior. As pessoas partiram do princípio de que procurava ajuda na forma de dinheiro. E, como não queriam ajudá-lo, ignoraram-no. Sentiam que se parassem tinham de ajudar.

– Ah! – concorda. – Não diz muito de bom sobre o género humano, então, se ninguém estava disposto a apreciar uma bela música porque significava ter possivelmente de ajudar alguém necessitado.

O professor continua a olhar para mim, por isso sinto que tenho de dizer algo.

– Pelo menos cinquenta pessoas pararam. Já é alguma coisa.

– Bem verdade – concorda. – É realmente alguma coisa.

Eu teria ajudado, ainda assim. Ajudo sempre. Nunca me consigo afastar, nunca, nem mesmo quando devia.

Depois de a palestra acabar, quando vou a sair do edifício, avisto um rosto familiar a descer a rua. Fico um pouco surpreendida ao constatar que é Amber Degraw, a mulher que me despediu quando a sua filha bebé não parava de me chamar mamã. Não é tanto por a ver que estou surpreendida, mas por a ver a empurrar um carrinho com a pequena Olive, que brinca com uma espécie de roca que traz enfiada o mais possível dentro da boca. Tem os dedos viscosos de baba.

Quando trabalhava para Amber, nunca parecia interessada em levar a Olive a passear. Portanto isto é bom para ambas.

Pondero virar a esquina para evitar um encontro confrangedor, mas então a Amber vê-me e ergue a mão num cumprimento entusiástico. Aparentemente, esqueceu-se por completo da forma como me despediu.

– Millie! – chama. – Meu Deus, que maravilhoso vê-la!

A sério? Não foi isso que disse da última vez que nos vimos.

– Olá, Amber – respondo, já resignada a fazer educadamente conversa.

Parando ao meu lado, solta a pega do carrinho durante tempo suficiente para alisar o seu lustroso cabelo louro-arruivado. Hoje, Amber está inteiramente voltada para o cabedal. Veste umas calças de couro, enfiadas numas botas de cabedal pelo joelho, com uma suave gabardina em couro castanho.

– Como está? – inclina a cabeça para o lado como se eu fosse uma amiga casual que foi atingida por alguns azares, e não alguém que despediu. – Tudo bem?

– Claro – respondo por entre dentes cerrados. – Tudo ótimo.

– Onde trabalha agora?

Sinto-me relutante em dizer-lhe seja o que for sobre a minha posição atual. Já me despediu pela mais estúpida das razões – não há nada, a meu ver, de que esta mulher não seja capaz.

– Estou entre empregos.

– Vi-a na rua no outro dia – comenta. – la a entrar naquele velho edifício da Rua 86. O Douglas Garrick vive lá, não é verdade?

Paraliso, surpreendida por ter conhecimento dessa informação. Por outro lado, nos círculos dos ricos, toda a

gente parece conhecer toda a gente.

– Sim, trabalho para os Garrick agora.

– Oh, era isso que estava lá a fazer?

O sorriso que curva os lábios da Amber faz-me sentir inquieta. O que está a sugerir ao certo?

– Sim...

Pisca-me o olho.

– De certeza que está a aproveitar ao máximo.

Não me agrada o seu tom, mas lembro a mim mesma que não tenho de ficar aqui a conversar com Amber – um dos benefícios de já não estar ao seu serviço. Tenho, ainda assim, de dizer olá à pequena Olive, cujo queixo brilha de baba. Há algum tempo que não a vejo e os bebés podem mudar muito depressa nesta idade. Provavelmente, já mal me reconhece.

– Olá, Olive! – chilreio.

Olive tira a roca da garganta e ergue os seus enormes olhos azuis para me fitar.

– Mamã! – grita com regozijo.

A cor esvai-se do rosto da Amber.

– Não! Ela não é a tua mamã! Eu é que sou!

– Mamã! – A Olive estende os seus braços gorduchos para mim. – Mamã!

Quando eu não a tomo nos braços, a menina começa a soluçar. Amber lança-me um olhar venenoso.

– Veja como a perturbou!

Com essa observação, vira-me costas e começa a descer aceleradamente a rua para se afastar de mim, enquanto a Olive continua a gritar «Mamã!». Apesar de tudo, o encontro pôs-me um sorriso no rosto. Parece que afinal se lembrava de mim.