Para superar esse obstáculo, usam um mecanismo fi nanceiro conhecido por “lavagem de dinheiro”. Ou seja, transformar lucros criminosos em ativos fi nanceiros respeitáveis, que possam fazer parte do sistema econômico, e gerar mais dinheiro ainda. Atribuíam a origem da expressão ao gângster americano Al Capone, que comprara em Chicago a cadeia de lavanderias Sanitary Cleaning Shops, e através dela depositava em bancos o dinheiro que ganhava com a venda ilegal de bebidas durante a Lei Seca nos Estados Unidos. Assim, se alguém lhe perguntasse por que era tão rico, sempre poderia dizer:
“As pessoas estão lavando mais roupa que nunca. Fico contente de ter investido no ramo.”
“Fez tudo certo. Esqueceu-se apenas de declarar o imposto de renda da sua empresa”, pensou Savoy.
A “lavagem de dinheiro” servia não apenas para drogas, mas para muitos outros objetivos: políticos que ganhavam comissão com o su-perfaturamento de obras, terroristas que precisavam fi nanciar operações em diversos lugares do mundo, companhias que gostavam 1 7 4
de esconder seus lucros e prejuízos dos acionistas, indivíduos que achavam o imposto de renda uma invenção inaceitável. Antigamente bastava abrir uma conta numerada em um paraíso fi scal, mas os governos começaram a passar uma série de leis de colaboração mútua, e o mecanismo precisou adaptar-se aos novos tempos.
Uma coisa, porém, era certa: os criminosos estavam sempre muitos passos adiante das autoridades e da fi scalização.
Como funciona agora? De maneira muito mais elegante, sofi sticada, e criativa. Tudo que precisavam era obedecer três etapas claramente defi nidas — colocação, ocultação e integração. Pegar várias laranjas, fazer uma laranjada, e servi-la sem que se suspeite da origem das frutas.
Fazer a laranjada é relativamente fáciclass="underline" a partir de uma série de contas, pequenas quantias começam a passar de banco para banco, muitas vezes em sistemas elaborados por computador, de modo que possam ir aos poucos se reagrupando mais adiante. Os caminhos são tão tortuosos que é quase impossível seguir os traços dos impulsos eletrônicos. Sim, porque a partir do momento em que o dinheiro está depositado, ele deixa de ser papel e se transforma em códigos digitais compostos de dois algarismos, “0” e “1”.
Savoy pensa em sua conta bancária; independentemente do que tinha ali — e não era muito — estava nas mãos de códigos que trafe-gavam por cabos. E se resolvessem, de uma hora para outra, mudar o sistema de todos os arquivos? E se o novo programa não funcionas-se? Como provar que tinha determinada quantia de dinheiro? Como poder transformar esses “0”e “1” em algo mais concreto, como uma casa ou compras no supermercado?
Não pode fazer nada: está nas mãos do sistema. Mas decide que assim que sair do hospital passará por um caixa eletrônico e pedirá um extrato de sua conta. Anota em sua agenda: a partir de agora 1 7 5
deve fazer isso todas as semanas, e se alguma calamidade acontecer no mundo, terá sempre uma prova em papel.
Papel. De novo a mesma palavra. Por que está delirando desta maneira? Sim, lavagem de dinheiro.
Volta a recapitular o que sabe a respeito da lavagem de dinheiro.
A última etapa é a mais fácil de todas; o dinheiro é reagrupado em uma conta respeitável, como a de uma companhia de investimentos imobiliários, ou em um fundo de aplicações no mercado fi nanceiro.
Se o governo vier com a mesma pergunta, “De onde veio esse dinheiro?”, é fácil explicar: de pequenos investidores que acreditam no que vendemos. A partir daí pode ser investido em mais ações, mais terrenos, aviões, objetos de luxo, casas com piscina, cartões de crédito sem limite de gastos. Os sócios dessas empresas são os mesmos que haviam fi nanciado originalmente as compras de droga, de armas, de tudo que fosse negócio ilícito. Mas o dinheiro está limpo; afi nal de contas, qualquer sociedade pode ganhar milhões de dólares especulando na bolsa de valores ou em terrenos.
Restava o primeiro passo, o mais difícil de todos: “Quem são esses pequenos investidores?”
É aí que entrava a criatividade criminosa. Os “laranjas” eram pessoas que circulavam por cassinos com dinheiro emprestado de um
“amigo”, em países onde a vigilância das apostas era muito menor que a corrupção: ninguém está proibido de ganhar fortunas. Nesse caso, havia combinações prévias com os proprietários, que fi cavam com uma porcentagem do dinheiro que trafegava pelas mesas.
Mas o jogador — uma pessoa de baixa renda — tinha como justifi car ao seu banqueiro, no dia seguinte, a enorme quantia de-positada.
Sorte.
E no dia seguinte, transferia a quase totalidade do dinheiro para o
“amigo” que o emprestou, fi cando com uma pequena porcentagem.
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Antigamente, a maneira preferida era a compra de restaurantes
— que podiam cobrar uma fortuna por seus pratos, e depositar o dinheiro sem levantar suspeitas. Mesmo que alguém passasse e visse as mesas completamente vazias, era impossível provar que ninguém tinha comido ali durante o dia inteiro. Mas agora, com o crescimen-to da indústria do lazer, surgia um processo muito mais criativo.
O sempre imponderável, arbitrário, incompreensível mercado de arte!
Pessoas de classe média e pouca renda levavam a leilão peças que valiam muito, e que alegavam terem sido encontradas no sótão da antiga casa dos avós. Eram arrematadas por muito dinheiro, e re-vendidas na semana seguinte para galerias especializadas, por dez ou vinte vezes o preço original. O “laranja” fi cava contente, agradecia aos deuses pela generosidade do destino, depositava o dinheiro em sua conta, e resolvia fazer um investimento em algum país estrangeiro, com o cuidado de deixar um pouco — a sua porcentagem — no banco original. Os deuses, neste caso, eram os verdadeiros donos das pinturas, que tornavam a arrematá-las nas galerias e colocá-las de novo no mercado através de outras mãos.
Mas havia produtos mais caros, como teatro, produção e distribuição de fi lmes. Era aí que as mãos invisíveis da lavagem de dinheiro faziam realmente sua festa.
Savoy continua lendo o resumo da vida do homem que agora se encontra na unidade de terapia intensiva, preenchendo alguns claros com sua própria imaginação.
Ator que sonhava em se transformar numa grande celebridade.
Não conseguiu emprego — embora até hoje cuidasse de sua aparência como se fosse uma grande estrela — mas terminou se familiari-zando com a indústria. Já na meia-idade, consegue levantar algum dinheiro com investidores e faz um ou dois fi lmes, que são um re-tumbante fracasso, porque não conseguiram a distribuição adequa-1 7 7
da. Mesmo assim, seu nome aparece nos créditos e nas revistas especializadas como alguém que tentou fazer algo que saísse do esquema dos grandes estúdios.
Está em um momento de desespero, não sabe o que fazer de sua vida, ninguém lhe dá uma terceira chance, cansou de implorar dinheiro para gente que só está interessada em investir em sucessos garantidos. Um belo dia é procurado por um grupo de pessoas, algumas gentis, outras que não dão absolutamente uma palavra.
Fazem uma proposta: ele começará a distribuir fi lmes, e sua primeira compra precisa ser algo real, com chance de atingir um grande público. Os principais estúdios farão grandes ofertas pelo produto, mas ele não precisa se preocupar — qualquer quantia proposta será coberta por seus novos amigos. O fi lme vai ser exibido em muitos cinemas, rendendo uma fortuna. Javits ganhará a coisa que mais precisa: reputação. Ninguém, a esta altura, estará investigando a vida daquele produtor frustrado. Dois ou três fi lmes mais tarde, porém, as autoridades vão começar a perguntar de onde vem o dinheiro
— mas aí o primeiro passo já está oculto pelo prazo de fi scalização, que venceu em cinco anos.
Javits inicia uma carreira vitoriosa. Os primeiros fi lmes de sua distribuidora dão lucro, os exibidores passam a acreditar no seu talento para selecionar o que há de melhor no mercado, diretores e produtores querem trabalhar com ele. Para manter as aparências, aceita sempre dois ou três projetos por semestre — o resto são fi lmes com orçamentos gigantescos, estrelas de primeira grandeza, profi ssionais insuspeitos e competentes, com muito dinheiro para a promoção, fi nanciados por grupos estabelecidos em paraísos fi scais. O resultado da bilheteria é depositado em um fundo de investimentos normal, acima de qualquer suspeita, que tem “parte das ações” do fi lme.