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Isso não tem importância. Igor está sozinho, cansado, precisa dormir.

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7:22 AM

Acorda às 7:22 da manhã. Era muito mais cedo do que o seu corpo pedia, mas ainda não teve tempo de se adaptar à diferença ho-rária entre Moscou e Paris; se estivesse em seu escritório, já teria tido pelo menos duas ou três reuniões com seus subordinados, e estaria se preparando para almoçar com algum novo cliente.

Mas ali tem outra tarefa: encontrar alguém e sacrifi car esta pessoa em nome do amor. Precisa de uma vítima, de modo que Ewa possa entender o recado ainda de manhã.

Toma banho, desce para tomar seu café em um restaurante com quase todas as mesas livres, e vai caminhar pela Croisette, a calçada diante dos principais hotéis de luxo. Não há trânsito — parte da pista está impedida, e só carros com autorização ofi cial podem passar.

A outra está vazia, porque mesmo as pessoas que vivem na cidade ainda estão se preparando para ir ao trabalho.

Não tem ressentimentos — já superou a fase mais difícil, quando não podia dormir por causa do sofrimento e do ódio que sentia.

Hoje em dia, é capaz de entender a atitude de Ewa: afi nal de contas, a monogamia é um mito que foi empurrado ao ser humano goela abaixo. Leu muito sobre o assunto: não se trata de excesso de hor-mônios ou vaidade, mas de uma confi guração genética encontrada em praticamente todos os animais.

As pesquisas não erram: cientistas que aplicaram testes de pater-nidade em pássaros, macacos, raposas, descobriram que o fato de estas espécies desenvolverem uma relação social muito parecida com o casamento, isso não quer dizer que sejam fi éis uns aos outros. Em 70% dos casos, o fi lhote é bastardo. Igor guarda na memória um parágrafo de David Barash, professor de psicologia da Universidade de Washington, em Seattle:

“Dizem que apenas os cisnes são fi éis, mas até isso é uma mentira.

A única espécie da natureza que não comete adultério é uma ameba, 2 5

Diplozoon paradoxum. Os dois parceiros se encontram quando ainda são jovens, e seus corpos se fundem em um único organismo.

Todo o resto é capaz de trair.”

Por isso não pode acusar Ewa de nada — ela apenas seguiu um instinto da raça humana. Mas como foi educada por convenções sociais que não respeitam a natureza, neste momento deve sentir-se culpada, achar que ele não a ama mais, que nunca a perdoaria.

Pelo contrário; está disposto a tudo, inclusive a mandar recados que terminarão com universos e mundos de outras pessoas, apenas para que entenda que não apenas será bem-vinda, como o passado será enterrado sem uma pergunta sequer.

Encontra uma jovem arrumando suas mercadorias na calçada. Pe-

ças de artesanato de gosto discutível.

Sim, ela é o sacrifício. Ela é a mensagem que deve enviar — e que com toda certeza será entendida assim que chegar ao seu destino.

Antes de aproximar-se, a contempla com ternura; ela não sabe que daqui a pouco, se tudo conspirar a favor, sua alma estará vagando nas nuvens, livre para sempre daquele trabalho idiota, que jamais a permitirá chegar aonde os seus sonhos gostariam que estivesse.

— Quanto custa? — indaga em francês fl uente.

— Qual o senhor deseja?

— Todas.

A menina — que não devia ter mais de 20 anos — sorri.

— Não é a primeira vez que me propõem isso. O próximo passo será: quer dar um passeio comigo? Você é bonita demais para estar aqui, vendendo estas coisas. Eu sou...

— ...não, eu não sou. Eu não trabalho em cinema. Eu não vou fazer de você uma atriz e mudar sua vida. Tampouco estou interessado nas coisas que vende. Tudo que preciso é conversar, e podemos fazer isso aqui mesmo.

A menina olha para outro lado.

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— São meus pais que fazem este trabalho, e me orgulho do que faço. Um dia alguém passará por aqui e irá reconhecer o valor destas peças. Por favor, siga adiante, não será difícil encontrar alguém para escutar o que tem a dizer.

Igor tira um maço de notas do bolso, e coloca gentilmente ao lado dela.

— Perdoe minha grosseria. Disse isso apenas para que abaixasse o preço. Muito prazer, meu nome é Igor Dalev. Cheguei ontem de Moscou e ainda estou confuso com a diferença horária.

— Meu nome é Olivia — diz a moça, fi ngindo acreditar na mentira.

Sem pedir permissão, senta-se ao seu lado. Ela afasta-se um pouco.

— O que quer conversar?

— Pegue as notas primeiro.

Olivia hesita. Mas, olhando em volta, entende que não tem nenhuma razão para ter medo. Os carros começam a circular pela única pista disponível, jovens dirigem-se para a praia, e um casal de velhos se aproxima pela calçada. Coloca o dinheiro no bolso sem contar quanto tem ali — a vida lhe deu bastante experiência para saber que é mais que sufi ciente.

— Obrigado por ter aceitado minha oferta — responde o russo.

— O que quero conversar? Na verdade, nada muito importante.

— Você deve estar aqui por alguma razão. Ninguém visita Cannes em uma época em que a cidade fi ca insuportável para seus moradores e para os turistas.

Igor olha o mar, e acende um cigarro.

— Fumar é perigoso.

Ele ignora o comentário.

— Para você, qual o sentido da vida? — pergunta.

— Amar.

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Olivia sorri. Era uma ótima maneira de começar o dia — falando de coisas mais profundas que o preço de cada peça de artesanato, ou a maneira como as pessoas estavam vestidas.

— E para o senhor, qual o sentido?

— Sim, amar. Mas pensei que também era importante ter dinheiro sufi ciente para mostrar aos meus pais que eu era capaz de vencer.

Consegui, e hoje eles se orgulham de mim. Encontrei a mulher perfeita, criei uma família, gostaria de ter fi lhos, honrar e temer a Deus.

Os fi lhos, entretanto, não vieram.

Olivia achou que seria muito delicado perguntar por quê. O homem de seus 40 anos, falando um francês perfeito, continua:

— Pensamos em adotar uma criança. Passamos dois ou três anos pensando nisso. Mas a vida começou a fi car muito movimentada

— viagens, festas, encontros, negociações.

— Quando o senhor sentou aqui para conversar, pensei que era mais um milionário excêntrico em busca de aventura. Mas fi co contente em conversar sobre essas coisas.

— Você pensa no seu futuro?

— Penso, e acho que meus sonhos são iguais aos seus. Claro que pretendo ter fi lhos.

Ela deu uma pausa. Não queria ferir o companheiro que aparecera de maneira tão inesperada.

— ...se for possível, é claro. Às vezes, Deus tem outros planos.

Ele parece não ter dado atenção à resposta.

— Para o festival só vêm milionários?

— Milionários, gente que acha que é milionária, ou gente que quer fi car milionária. Durante estes dias, esta parte da cidade parece um hospício, todos se comportam como pessoas importantes, exceto as pessoas que são realmente importantes — estas são mais gentis, não precisam provar nada a ninguém. Nem sempre compram o que eu tenho para vender, mas pelo menos sorriem, dizem algumas 2 8

palavras delicadas, e me olham com respeito. O que o senhor está fazendo aqui?

— Deus construiu o mundo em seis dias. Mas o que é o mundo?

É aquilo que você ou eu vemos. Cada vez que morre uma pessoa, uma parte do universo é destruída. Tudo aquilo que este ser humano sentiu, experimentou, contemplou desaparece com ele, da mesma maneira que as lágrimas desaparecem na chuva.

— “Como lágrimas na chuva”... Sim, eu vi um fi lme que usava esta frase. Não me lembro qual.

— Não vim para chorar. Vim para mandar recados à mulher que amo. E para isso, preciso apagar alguns universos ou mundos.

Em vez de fi car assustada com o comentário, Olivia ri. Realmente aquele homem bonito, bem vestido, falando francês fl uente, não parece ter nada de louco. Estava cansada de escutar sempre os mesmos comentários: você é muito bonita, você podia estar em situação muito melhor, qual o preço disso, quanto custa aquilo, é caríssimo, vou dar uma volta e volto mais tarde (o que nunca acontecia, claro), etc. Pelo menos o russo tinha senso de humor.