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Igor é poderoso. Lutara sua vida inteira para chegar onde está. Para que isso acontecesse, fora obrigado a participar de jantares aborrecidos, conferências que não terminavam nunca, encontros com pes soas que detestava, sorrisos quando estava com vontade de dizer algum insulto, insultos quando na verdade tinha pena dos pobres coitados 1 8 2

que “serviam de exemplo”. Trabalhara dia e noite, fi nais de semana, enterrado em encontros com seus advogados, administradores, funcionários, assessores de imprensa. Partira do zero logo após a queda do regime comunista e conseguira chegar ao topo. Mais do que isso, conseguira sobreviver a todas as tempestades políticas e econômicas que assolaram seu país nas duas primeiras décadas do novo regime.

Tudo isso por que razão? Porque temia a Deus e sabia que o caminho que percorrera em sua vida era uma bênção que precisava ser respeitada, ou perderia tudo.

Claro, em alguns momentos algo lhe dizia que estava deixando de lado a parte mais importante dessa bênção: Ewa. Mas por muitos anos teve certeza de que ela o compreendia, aceitava que aquilo era apenas uma fase, em breve poderiam desfrutar de todo o tempo que precisavam juntos. Faziam grandes planos — viagens, passeios de barco, uma casa isolada no meio de uma montanha, com a lareira acesa, e a certeza de que podiam fi car ali o tempo que fosse necessário, sem que precisassem pensar em dinheiro, dívidas, obrigações. Encontrariam uma escola para as muitas crianças que planejavam ter juntos, passariam tardes inteiras caminhando pelas fl orestas ao redor, iriam jantar em pequenos mas acolhedores restaurantes locais.

Teriam tempo de cuidar do jardim, ler, ir ao cinema, fazer as coisas simples com que todo mundo sonha, as únicas coisas capazes de preencher a vida de qualquer indivíduo sobre a face da terra. Quando chegava em casa, cheio de papéis que espalhava sobre a cama, ele pedia um pouco mais de paciência. Quando o telefone celular tocava justamente no dia em que tinham escolhido jantar juntos, e era obrigado a interromper a conversa e passar um longo tempo discutindo com a pessoa no outro lado da linha, pedia de novo mais um pouco de paciência. Sabia que Ewa fazia o possível e o impossí-

vel para que ele se sentisse confortável, embora de vez em quando se queixasse, com muito carinho, que precisavam aproveitar a vida 1 8 3

enquanto eram ainda jovens, que tinham dinheiro sufi ciente para as próximas cinco gerações.

Igor confi rmava: podia parar naquele mesmo dia. Ewa sorria, acariciava seu rosto — e neste momento ele se lembrava de que tinha esquecido alguma coisa importante, ia até o telefone ou o computador, conversava ou enviava uma mensagem.

Um homem de aproximadamente 40 anos levanta-se, olha o bar em torno de si, e brande um jornal acima de sua cabeça gritando:

— “Violência e horror em Tóquio”, diz a manchete. “Sete pessoas assassinadas em uma loja de jogos eletrônicos.”

Todos olham em sua direção.

— Violência! Eles não sabem do que estão falando! A violência está aqui!

Igor sente um arrepio na espinha.

— Se um desequilibrado mata a facadas alguns inocentes, o mundo inteiro se horroriza. Mas quem dá atenção à violência intelectual que está acontecendo em Cannes? Nosso festival está sendo assassinado em nome de uma ditadura. Já não se trata de escolher o melhor fi lme, mas de cometer crimes contra a humanidade, obrigando as pessoas a comprar produtos que não desejam, esquecer a arte para pensar na moda, deixar de ir a projeções de fi lmes para participar de almoços e jantares. Isso é uma brutalidade! Eu estou aqui...

— Cala a boca — diz alguém. — Ninguém está interessado em saber por que você está aqui.

— ...Eu estou aqui para denunciar a escravidão dos desejos do homem! Que passou a fazer suas escolhas não por causa da inteligência, mas por causa da propaganda, da mentira! Por que se preocupam com as facadas em Tóquio, e não dão importância às facadas que toda uma geração de cineastas está sendo obrigada a suportar?

O homem faz uma pausa, esperando a ovação consagradora, mas nem sequer escuta o silêncio da refl exão; todos já voltaram a conver-1 8 4

sar em suas mesas, indiferentes ao que terminara de ser dito. Torna a sentar-se, aparentando um ar de suprema dignidade, mas com o coração aos pedaços por causa do ridículo que acabou de passar.

“Vi-si-bi-li-da-de”, pensa Igor. “O problema é que ninguém prestou atenção.”

É sua vez de olhar em torno. Ewa está no mesmo hotel, e depois de muitos anos de casamento, é capaz de jurar que está tomando um café ou um chá não muito longe do lugar onde está sentado. Recebeu seus recados, e com toda certeza o procura agora, sabendo que ele também deve estar próximo.

Não consegue vê-la. E não consegue parar de pensar nela, sua obsessão. Lembra-se de certa noite, voltando tarde para casa em sua limusine importada, com seu chofer que ao mesmo tempo servia de segurança — tinham lutado juntos na guerra do Afeganistão, mas a sorte sorrira de maneira diferente para ambos —, ele pediu que parasse no Hotel Kempinski. Deixou o celular e os papéis no carro, subiu até o bar que se encontrava no terraço do edifício. Ao contrário daquele terraço de Cannes, o lugar estava quase vazio, pronto para fechar. Distribuiu uma generosa gorjeta entre os empregados, fez com que continuassem trabalhando para ele apenas uma hora a mais.

E foi aí que entendeu tudo. Não, não era verdade que iria parar no próximo mês, nem no próximo ano, nem na próxima década.

Jamais teriam a tal casa de campo e a família que sonhavam. Perguntava a si mesmo, naquela noite, por que isso era impossível, e tinha apenas uma resposta.

O caminho do poder não tem volta. Seria eternamente escravo daquilo que escolheu, e se fosse realmente realizar o seu sonho de largar tudo, entraria em uma depressão profunda.

Por que agia assim? Por causa dos pesadelos de noite, quando se lembrava das trincheiras, do rapaz jovem, assustado, cumprindo um dever que não tinha escolhido, sendo obrigado a matar? Porque 1 8 5

não conseguia esquecer sua primeira vítima, um camponês que entrara na linha de tiro quando o Exército Vermelho lutava contra os guerrilheiros afegãos? Por causa das muitas pessoas que primeiro o olharam com descrédito, e depois o humilharam, quando decidira que o futuro do mundo estava na telefonia celular, e começara a buscar investidores para o seu negócio? Porque no início teve que se associar com as sombras, os mafi osos russos que desejavam lavar o dinheiro ganho com prostituição?

Havia conseguido devolver os empréstimos sem ter que corromper a si mesmo e sem fi car devendo favores. Havia conseguido negociar com as sombras, e mesmo assim manter sua luz. Entendia que a guerra era coisa de um passado remoto, e jamais retornaria a um campo de batalha. Conseguira encontrar a mulher da sua vida. Trabalhava naquilo que sempre quis. Era rico — era riquíssimo, e mesmo que amanhã o sistema comunista voltasse, a maior parte de sua fortuna pessoal estava fora do país. Tinha boas ligações com todos os partidos políticos. Conhecera as grandes personalidades mundiais.

Terminara por organizar uma Fundação que se ocupava de órfãos de soldados mortos durante a invasão soviética no Afeganistão.

Mas ali, naquele café perto da Praça Vermelha, sendo o único cliente, e sabendo que tinha poder bastante para pagar os garçons de modo a passar a noite inteira ali, entendeu.

Entendeu porque estava vendo o mesmo se passar com sua mulher, agora sempre viajando, também chegando tarde quando se encontrava em Moscou, indo direto para a tela do computador assim que entrava. Entendeu que, ao contrário do que todos pensavam, o poder total signifi ca a escravidão mais absoluta. Quando se chega ali, não se quer mais sair. Sempre existe uma nova montanha a conquistar. Sempre existe um concorrente a ser convencido ou superado.

Junto com mais 2.000 pessoas, fazia parte do clube mais exclusivo do mundo, que se reúne apenas uma vez por ano em Davos, na Suíça, no Fórum Econômico Mundial; todas elas eram mais do que 1 8 6