— E por que estou entrando sozinha?
— Parece que houve algum contratempo. Ele já devia estar aqui, afi nal de contas é um profi ssional. Mas deve estar atrasado.
“Ele” é a Celebridade. Podia ter dito o que julgava ser verdade:
“Deve ter arranjado alguma menina doida para fazer amor, e pelo visto não saiu do quarto na hora marcada.” Entretanto, isso poderia ferir o coração daquela principiante — que neste momento devia estar alimentando sonhos de uma linda história de amor, mesmo que não tivesse absolutamente nenhuma razão para isso.
Não precisava ser cruel, como tampouco necessitava ser amigo; bastava cumprir seu dever e logo poderia sair dali. Além do mais, se a menina boboca não soubesse controlar direito suas emoções, as fotos no corredor seriam prejudicadas.
Coloca-se adiante dela na fi la, e pede que o siga, mas deixando alguns metros de distância entre os dois. Assim que passar pelo corredor irá direto até os fotógrafos, ver se consegue despertar o interesse de algum.
Gabriela espera alguns segundos, coloca seu melhor sorriso, segura a bolsa corretamente, ajeita a postura, e começa a caminhar com segurança, preparada para encarar os fl ashes. A curva terminava em um local fortemente iluminado, com uma parede branca coberta com os logotipos do patrocinador; do outro lado uma pequena ar-quibancada, onde diversas lentes apontavam em sua direção.
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Continuou caminhando, desta vez procurando estar consciente de cada passo — não queria repetir a frustrante experiência do tapete vermelho, que terminara antes que pudesse se dar conta do que acabara de viver. O momento agora precisa ser vivido como se o fi lme de sua vida estivesse passando em câmera lenta. Em algum momento, as objetivas começariam a disparar.
— Jasmine! — gritou alguém.
Jasmine? Mas seu nome era Gabriela!
Pára por uma fração de segundo, o sorriso congelado no rosto.
Não, seu nome não era mais Gabriela. Como era mesmo? Jasmine!
De repente, escuta os ruídos de botões sendo apertados, objetivas abrindo e fechando, só que todas as lentes apontavam para a pessoa atrás dela.
— Mova-se! — diz um fotógrafo. — Seu momento de glória já passou. Me deixa trabalhar!
Ela não acredita. Continua sorrindo, mas começa a mover-se mais rápido em direção ao túnel escuro que parece começar onde termina o corredor de luz.
— Jasmine! Olha para este lado! Aqui!
Os fotógrafos parecem tomados de uma histeria coletiva.
Chegou ao fi nal do “corredor” sem que ninguém tivesse sequer se incomodado em gritar seu nome, que por sinal havia esquecido completamente. O andrógino a esperava ali.
— Não se preocupe — disse, mostrando pela primeira vez um pouco de humanidade. — Você verá a mesma coisa acontecer com outras pessoas esta noite. Pior: você verá gente que já teve seu nome gritado, e hoje passa sorrindo, esperando por uma foto, sem que absolutamente ninguém tenha a piedade de disparar um fl ash.
Precisa mostrar sangue-frio. Controlar-se. Aquilo não era o fi m do mundo, os demônios não podem aparecer logo agora.
— Não estou preocupada. Afi nal de contas, comecei hoje. Quem é Jasmine?
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— Também começou hoje. No fi nal da tarde anunciaram um gigantesco contrato com Hamid Hussein. Mas não é para fi lmes, não se preocupe.
Não estava preocupada. Simplesmente queria que a terra se abrisse e a engolisse por completo.
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8:12 PM
Sorria.
Finja que não está sabendo por que tanta gente está interessada no seu nome.
Caminhe como se fosse um tapete vermelho, e não uma passarela.
Atenção, porque tem gente entrando, os segundos necessários para as fotos já se esgotaram, melhor ir em frente.
Mas os fotógrafos não param de gritar seu nome. Fica constran-gida, porque a próxima pessoa — na verdade, um casal — precisa esperar até que todos estejam satisfeitos, o que não vai acontecer nunca, porque sempre querem o ângulo ideal, a foto única (como se isso fosse possível!), um olhar direto para a objetiva de sua câmera.
Agora dê um adeus, sempre sorrindo. Siga adiante.
É cercada por um grupo de jornalistas quando chega ao fi nal do corredor. Querem saber tudo sobre o monumental contrato com um dos estilistas mais importantes do mundo. Gostaria de dizer: “Não é verdade.”
— Estamos estudando os detalhes — responde.
Insistem. Uma televisão se aproxima, a repórter com o microfone nas mãos. Pergunta se está contente com as novidades. Sim, acha que o desfi le foi ótimo, e que o próximo passo da estilista — faz questão de dizer o nome dela — será a Semana de Moda de Paris.
A jornalista parece não saber que apresentaram uma coleção durante a tarde. As perguntas continuam, só que desta vez estão sendo fi lmadas.
Não relaxe, responda apenas aquilo que lhe interessa, e não o que estão insistindo para arrancar. Finja que não sabe dos detalhes e fale do sucesso do desfi le, da merecida homenagem a Ann Salens, o gênio esquecido porque não teve o privilégio de nascer na França. Um rapaz metido a engraçado quer saber o que está achando da festa; neste 3 1 3
caso, ela responde com a mesma ironia: “Você ainda não me deixou entrar.” Uma antiga modelo, agora transformada em apresentadora de televisão a cabo, pergunta como se sente ao ser contratada para ser face exclusiva da próxima coleção de HH. Um profi ssional mais bem informado quer saber se é verdade que estará ganhando por ano uma quantia superior a seis dígitos:
— Deviam ter colocado sete dígitos no release de imprensa, não acha? Superior a seis dígitos soa um pouco absurdo, não acha? Ou melhor, podiam dizer que é mais de um milhão de euros, em vez de obrigar os espectadores a fi carem contando os dígitos, não acha?
Aliás, podiam chamar “zeros” em vez de “dígitos”, não acha?
Não acha nada.
— Estamos estudando — repete. — Por favor, deixem-me respirar um pouco de ar puro. Mais adiante respondo o que for possível.
Mentira. Mais adiante pegará um táxi de volta para casa.
Alguém pergunta por que não está usando um Hamid Hussein.
— Sempre trabalhei para esta estilista.
Insiste em dizer o nome dela. Alguns anotam. Outros simplesmente ignoram — estão ali para uma notícia que querem publicar, e não para descobrir a verdade por trás dos fatos.
É salva pelo ritmo em que as coisas acontecem em uma festa co-mo aquela: no “corredor” os fotógrafos estão gritando de novo.
Co mo em um movimento orquestrado por um maestro invisível, os jornalistas que a cercam se viram e descobrem que uma celebridade maior, mais importante, acaba de chegar. Jasmine aproveita o segundo de hesitação do grupo, e resolve caminhar até a amurada do lindo jardim transformado em salão onde as pessoas bebem, fumam, e andam de um lugar para o outro.
Daqui a pouco também poderá beber, fumar, olhar o céu, dar socos no parapeito, fazer meia-volta e ir embora.
Entretanto, uma mulher e uma criatura estranha — parece um andróide de fi lme de fi cção científi ca — estão com os olhos fi xos 3 1 4
nela, barrando seus passos. Sim, eles não sabem o que estão fazendo ali, melhor aproximar-se e puxar conversa. Apresenta-se. A criatura estranha tira o telefone celular do bolso, faz uma careta, pede desculpas mas precisa se afastar por algum tempo.
A moça fi ca parada, olhando-a com um ar de “você estragou minha noite”.
Está arrependida de ter aceitado o convite para a festa. Chegou pelas mãos de duas pessoas, quando ela e sua companheira se preparavam para ir a uma pequena recepção oferecida pela BCA (Belgium Clothing Association, o órgão que controla e estimula a moda no seu país). Mas nem tudo são nuvens negras no horizonte: seu vestido pode ser visto se as fotos forem publicadas, e alguém pode se interessar em saber mesmo o que está usando.