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uma grande diferença para a humanidade — embora tenham descoberto que no momento em que se retiram de suas carreiras, passam a enfrentar um cotidiano tão aborrecido como o de qualquer classe média: café-da-manhã, leitura de jornais, almoço, um cochilo em seguida, jantar, televisão. Aceitam a maioria dos convites para jantar.

Vão a eventos sociais e esportivos nos fi nais de semana. Passam as férias em lugares da moda (embora já tenham se aposentado, ainda acreditam que existe algo chamado “férias”).

Na segunda ponta do triângulo, aqueles que ainda não conseguiram nada, tentando remar em águas turbulentas, quebrar a resistência dos vencedores, mostrar alegria mesmo se estão com o pai ou a mãe no hospital, vendendo o que ainda não possuem.

Finalmente, no vértice superior, está a Superclasse.

Essa é a mistura ideal de uma festa: os que chegaram lá e seguiram o caminho normal da vida; seu tempo de infl uência terminou embora ainda tenham dinheiro para muitas gerações, e agora descobrem que o poder é mais importante que a riqueza, mas já é tarde. Os que ainda não chegaram, e lutam com toda a energia e entusiasmo para animar a festa, achando que realmente conseguiram causar uma boa impressão, e descobrindo que ninguém os telefonou nas semanas seguintes, apesar dos muitos cartões distribuídos. Finalmente, aqueles que se equilibram no topo, sabendo que ali venta muito, e qualquer coisa poderá desequilibrá-los, fazendo cair no abismo.

As pessoas continuam se aproximando para conversar com ele; ninguém toca no assunto do assassinato — seja por ignorância completa, já que vivem em um mundo onde essas coisas não acontecem, seja por delicadeza, o que duvida muito. Olha à sua volta, e vê exatamente aquilo que mais detesta em matéria de moda: mulheres de meia-idade vestidas como se tivessem 20 anos. Será que não percebem que já está na hora de mudar de estilo? Conversa com um, sorri para outro, agradece elogios, apresenta Ewa aos poucos que ainda 3 6 1

não a conhecem. Tem apenas um pensamento fi xo: encontrar-se com Jasmine e posar para os fotógrafos nos próximos cinco minutos.

Um industrial e sua esposa relatam em detalhes a última vez que se viram — algo de que Hamid não consegue se lembrar, mas concorda com a cabeça. Falam de viagens, encontros, projetos que estão sendo desenvolvidos. Ninguém toca em assuntos interessantes, como

“você está mesmo feliz?” ou “depois de tudo que vivemos, qual é realmente o sentido da vitória?” Se fazem parte da Superclasse, claro que devem se comportar como se estivessem contentes e realizados, mesmo que estejam perguntando a si mesmos: o que realmente fazer do meu futuro, agora que tenho tudo que sonhei?

Uma criatura sórdida, saída de uma história em quadrinhos e usando calças justas por debaixo de um traje indiano, se aproxima:

— Senhor Hamid, lamento muito...

— Quem é você?

— Estou neste momento trabalhando para o senhor.

Que absurdo.

— Estou ocupado. E já sei tudo que precisava saber a respeito do lamentável incidente desta noite, de modo que não se preocupe.

Mas a criatura não se afasta. Hamid começa a sentir-se constrangido por sua presença, principalmente porque outros amigos que estavam por perto escutaram a terrível frase: “Estou trabalhando para o senhor.” O que vão pensar?

— Senhor Hamid, vou trazer a atriz do fi lme para que o senhor a conheça. Tive que me afastar dela assim que recebi um recado pelo telefone, mas...

— Mais tarde. Neste momento estou aguardando Jasmine Tiger.

O ser estranho afastou-se. Atriz do fi lme! Pobre moça, contratada e despedida no mesmo dia.

Ewa tem um copo de champagne em uma das mãos, um celular na outra, e um cigarro apagado entre os dedos. O industrial tira um isqueiro de ouro do bolso e faz menção de acendê-lo.

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— Não se preocupe, eu mesma podia fazer isso — responde. —

Mas tenho justamente a outra mão ocupada porque estou tentando fumar menos.

Gostaria de dizer: “Estou com o celular nas mãos para proteger esse idiota que está ao meu lado. Que não acredita em mim. Que jamais se interessou por minha vida e pelas coisas por que passei.

Se eu tornar a receber uma mensagem, faço um escândalo e ele será obrigado a sair daqui comigo, mesmo que não queira. Mesmo que depois me insulte, pelo menos estarei consciente de que salvei sua vida. Conheço o criminoso. Sinto que a Maldade Absoluta está por perto.”

Uma recepcionista começa a pedir que os convidados se dirijam ao salão superior. Hamid Hussein está pronto para aceitar o seu destino sem grandes reclamações; a foto fi ca para amanhã, irá subir os degraus com ela. Neste momento, um de seus assistentes aparece.

— Jasmine Tiger não está na festa. Deve ter ido embora.

— Não tem importância. Talvez tenham esquecido de avisá-la que deveríamos nos encontrar aqui.

Tem o ar calmo, de quem está acostumado a lidar com situações semelhantes. Mas seu sangue está fervendo: foi embora da festa?

Quem está pensando que é?

Tão fácil morrer. Embora o organismo humano seja um dos mecanismos mais bem concebidos da criação, basta um pequeno projétil de chumbo entrar com certa velocidade, cortar aqui e ali sem qualquer critério, e pronto.

Morte: segundo o dicionário, o fi nal de uma vida (embora vida também seja algo que necessite de defi nição correta). A paralisação permanente das funções vitais do corpo, como o cérebro, a respira-

ção, a corrente sanguínea e o coração. Duas coisas resistem a esse processo por mais alguns dias ou semanas: tanto os cabelos como as unhas continuam a crescer.

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A defi nição muda quando se pensa nas religiões: para algumas se trata de uma passagem para um estado superior, enquanto outras garantem que é um estado provisório, e a alma que antes habitava aquele corpo deverá retornar mais adiante, para pagar seus pecados ou desfrutar em uma próxima vida as bênçãos que lhe foram recusadas durante a encarnação anterior.

A moça está quieta ao seu lado. Ou o efeito do champagne chegou ao máximo, ou já passou — e agora ela se dá conta de que não conhece ninguém, que pode ser seu primeiro e último convite, que, às vezes, os sonhos se transformam em pesadelos. Alguns homens se aproximaram quando ele se afastou com a menina triste, mas pelo visto nenhum conseguiu deixá-la confortável. Quando o viu de novo, pediu que a acompanhasse durante o resto da festa. Perguntou se tinha transporte para a volta, porque está sem dinheiro, e seu companheiro pelo visto não irá mais voltar.

— Sim, posso deixá-la em casa. Com todo prazer.

Não estava nos seus planos, mas desde que notou o policial vigiando a multidão, é preciso mostrar que está acompanhado; é mais uma das muitas pessoas importantes e desconhecidas que estão presentes, orgulhoso de ter ao seu lado uma mulher bonita, bem mais jovem, o que se encaixa perfeitamente nos padrões do local.

— Não acha que devemos entrar?

— Sim. Mas conheço este tipo de evento, e o mais inteligente é esperar que antes todos estejam sentados. Pelo menos três ou quatro mesas têm lugares reservados, e não podemos correr o risco de passar por uma situação constrangedora.

Nota que a moça fi cou um pouco decepcionada por ele não ter um lugar reservado, mas conformou-se.

Os garçons estão recolhendo os copos vazios espalhados por todo o jardim. As modelos já desceram dos ridículos pedestais, onde dan-

çavam para mostrar aos homens que ainda há vida interessante na face da Terra, e relembrar às mulheres que estão urgentemente pre-3 6 4

cisando de uma lipoaspiração, um pouco de botox, uma aplicação de silicone, uma cirurgia estética.

— Por favor, vamos. Preciso comer. Vou passar mal.