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apontada diretamente para a sua testa — o movimento do homem foi mais rápido do que pensava.

Seu corpo continua voando em direção à arma. Deviam ter conversado antes — Ewa jamais lhe falara muito do ex-marido, como se ele pertencesse a um passado que não gostaria de lembrar em nenhuma circunstância. Embora tudo esteja acontecendo em câmera lenta, ele recuou com a rapidez de um gato. A pistola não está tremendo.

O primeiro segundo está chegando ao fi nal. Ele viu um movimento no dedo, mas não há som, exceto a pressão de alguma coisa que-brando os ossos no centro de sua testa. A partir daí, o seu universo se apaga, e junto com ele, vão as lembranças do jovem que sonhou ser alguém, a vinda para Paris, o seu pai com a loja de tecidos, o sheik, as lutas para conseguir um lugar ao sol, os desfi les, as viagens, o encontro com a mulher amada, os dias de vinho e rosas, os sorrisos e prantos, o último nascer da lua, os olhos da Maldade Absoluta, os olhos assustados de sua mulher, tudo desaparece.

— Não grite. Não diga uma palavra. Acalme-se.

Claro que ela não vai gritar, e tampouco precisa pedir que se acalme. Está em estado de choque como animal que é, apesar das jóias e do vestido caro. O sangue já não circula com a mesma velocidade, o rosto fi ca pálido, a voz desaparece, a pressão arterial começou a despencar. Sabe exatamente o que está sentindo — ele já experimen-tara isso quando viu o rifl e do guerreiro afegão apontado para o seu peito. Imobilidade total, incapacidade de reagir. Fora salvo porque um companheiro disparou primeiro. Até hoje era grato ao homem que salvara sua vida; todos imaginavam que era seu motorista, quando na verdade tinha muitas ações da companhia, conversavam sempre, haviam se falado naquela tarde — ele telefonara perguntando se Ewa dera algum sinal de ter recebido as mensagens.

Ewa, pobre Ewa. Com um homem morrendo em seu colo. Os seres humanos são imprevisíveis, reagem como aquele tolo reagiu, 3 8 3

sabendo que em momento algum tinha condições de vencê-lo. As armas também são imprevisíveis: achou que a bala iria sair do outro lado da cabeça, arrancando uma tampa do cérebro, mas pelo ângulo do tiro, ela deve ter atravessado o cérebro, desviado em algum osso, e penetrado no tórax. Que treme descontroladamente, sem sangramento visível.

Deve ser o tremor, e não o tiro, que colocou Ewa neste estado.

Empurra o corpo com os pés, e dá um tiro em sua nuca. Os tremores cessam. O homem merece ter uma morte digna — foi valente até o fi nal.

Estão os dois a sós na praia. Ele ajoelha-se diante dela e coloca a pistola em seu seio. Ewa não faz nenhum movimento.

Tinha sempre imaginado um fi nal diferente para esta história: ela entendendo os recados. Dando uma nova chance à felicidade. Tinha pensado em tudo que diria quando fi nalmente estivessem como estavam agora, sem ninguém por perto, olhando o mar calmo do Mediterrâneo, sorrindo e conversando.

Não fi cará com essas palavras na garganta, mesmo que agora sejam absolutamente inúteis.

— Sempre imaginei que tornaríamos a caminhar de mãos dadas em um parque, ou na beira do mar, dizendo fi nalmente um para o outro as palavras de amor que viviam sendo adiadas. Jantaríamos fora uma vez por semana, viajaríamos juntos para lugares que nunca estivemos apenas pelo prazer de descobrir coisas novas na companhia um do outro.

“Enquanto você esteve fora, eu copiei poemas em um caderno, para que pudesse sussurrá-los em seu ouvido enquanto adorme-cesse. Escrevi cartas dizendo tudo que sentia, que deixaria em um lugar onde você terminaria descobrindo, e entendendo que não a esqueci um só dia, um minuto sequer. Iríamos discutir juntos os projetos para a casa que pretendia construir só para nós na mar-3 8 4

gem do lago Baikal; sei que tinha várias idéias a respeito. Planejei um aeroporto privado, deixaria que você usasse o seu bom gosto para cuidar da decoração. Você, a mulher que justifi cou e deu um sentido à minha vida.”

Ewa não diz nada. Apenas olha o mar à sua frente.

— Vim até aqui por sua causa. E entendi, fi nalmente, que tudo isso era absolutamente inútil.

Apertou o gatilho.

Quase não se ouviu nenhum som, já que o cano da arma estava colado no corpo. A bala penetrou no ponto certo, e o coração deixou de bater imediatamente. Apesar de toda a dor que lhe causara, não queria que sofresse.

Se existia uma vida após a morte, ambos — a mulher que o traiu, e o homem que permitiu que isso acontecesse — agora estavam de mãos dadas, caminhando pelo luar que chegava até a beira da praia. Encontravam o anjo de sobrancelhas grossas, que explicaria direito tudo que aconteceu, e não permitiria sentimentos de rancor ou ódio; todo mundo um dia precisa partir do planeta conhecido como Terra. E que o amor justifi ca certos atos que os seres humanos são incapazes de compreender — a não ser que estejam vivendo o que ele vivera.

Ewa mantinha os olhos abertos, mas seu corpo perde a rigidez, e cai na areia. Deixa os dois ali, vai até os rochedos, limpa cuidadosamente as impressões digitais da arma e a atira no mar, o mais longe possível do local onde contemplavam a lua. Volta a subir as escadas, encontra uma lixeira no caminho e deixa ali o silenciador

— não houvera necessidade, a música tinha aumentado no momento certo.

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10:55 PM

Gabriela vai até a única pessoa que conhece.

Os convidados estão neste momento saindo do jantar; o conjunto está tocando músicas dos anos 60, a festa começa, as pessoas sorriem e conversam uma com as outras, apesar do barulho ensurdecedor.

— Estive procurando por você! Onde estão seus amigos?

— Onde está seu amigo?

— Acaba de sair, dizendo que houve um grande problema com o ator e o diretor! Me deixou aqui, sem me dar qualquer explicação maior! Não haverá festa no barco, foi tudo que me disse.

Igor imagina o problema. Não tinha a menor intenção de matar alguém que admirava tanto, procurava assistir a seus fi lmes sempre que tinha um pouco de tempo. Mas, enfi m, é o destino que escolhe

— o homem é apenas um instrumento.

— Estou indo embora. Se quiser, posso deixá-la em seu hotel.

— Mas a festa está começando agora!

— Aproveite, então. Preciso viajar amanhã cedo.

Gabriela precisa tomar uma decisão rapidamente. Ou fi ca ali com a bolsa cheia de papel, em um lugar que não conhece ninguém, esperando que uma alma caridosa resolva levá-la pelo menos até a Croisette — onde tirará os sapatos, antes de subir a interminável ladeira até o quarto que divide com mais quatro amigas.

Ou aceita o convite daquele homem gentil, que deve ter excelentes contatos, é amigo da mulher de Hamid Hussein. Presenciara o começo de uma discussão, mas acredita que coisas como essa aconteçam todos os dias, e em breve fariam as pazes.

Já tem um papel garantido. Está exausta de todas as emoções daquele dia. Tem medo de terminar bebendo demais e estragar tudo.

Homens solitários vão se aproximar perguntando se está sozinha, o que irá fazer depois, se gostaria de visitar no dia seguinte uma joalheria com algum deles. Terá que passar o resto da noite esqui-3 8 7

vando-se gentilmente, sem ferir nenhuma suscetibilidade, porque nunca sabe com quem está falando. Aquele jantar é um dos mais exclusivos do Festival.

— Vamos.

Uma estrela se comporta assim; sai quando ninguém espera.

Caminham até a portaria do hotel, Gunther (não consegue se lembrar do outro nome) pede um táxi, o recepcionista diz que eles têm sorte — se tivessem esperado um pouco mais, seriam obrigados a entrar em uma fi la gigantesca.

No caminho de volta, ela pergunta por que mentiu a respeito do que fazia. Ele diz que não mentiu — já teve realmente uma companhia telefônica, mas resolveu vendê-la porque achava que o futuro estava em maquinaria pesada.

E o nome?

— Igor é um apelido carinhoso, o diminutivo de Gunther em russo.

Gabriela aguarda a cada minuto o famoso convite “Vamos tomar um drinque no meu hotel antes de dormir?”. Mas nada acontece: ele a deixa na porta da sua casa, despede-se com um aperto de mão, e continua adiante.