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Sempre dizia a si mesma que ainda estava em início de carreira, embora dias e meses começassem a voar. Era capaz de representar Ofélia em Hamlet durante o curso de teatro, mas a vida lhe oferecia geralmente anúncios de desodorantes e cremes de beleza. Quando ia até uma agência mostrar o book e as cartas de recomendação de professores, amigos, gente com quem já tinha trabalhado, encontrava-se na sala de espera com várias moças que se pareciam com ela, todas sorrindo, todas se odiando mutuamente, fazendo o possível para conseguirem qualquer coisa, absolutamente qualquer coisa que lhes desse “visibilidade”, como diziam os profi ssionais.

Esperava horas até que chegasse sua vez, e enquanto isso lia livros de meditação e de pensamento positivo. Terminava sentada diante de uma pessoa — homem ou mulher — que jamais prestava atenção às 4 6

cartas, ia direto às fotos, e não fazia nenhum comentário. Anotavam seu nome. Eventualmente era chamada para um teste — que uma em cada dez vezes dava certo. Lá estava ela de novo, com todo o talento que julgava possuir, diante de uma câmera e de gente mal-educada, que sempre reclamava: “Fique mais à vontade, sorria, vire para a direita, abaixe um pouco o queixo, umedeça seus lábios.”

Pronto: mais uma foto de um novo tipo de café estava terminada.

E quando não era chamada? Tinha um único pensamento: rejei-

ção. Mas aos poucos foi aprendendo a conviver com isso, entendeu que estava passando por provas necessárias, sendo testada em sua perseverança e sua fé. Recusava-se a aceitar o fato de que o curso, as cartas, o currículo cheio de apresentações pequenas em lugares sem importância, tudo isso não servia para absolutamente...

O telefone celular tocou.

...nada.

O telefone celular continuou tocando.

Sem entender direito o que estava acontecendo — estava viajando em direção ao seu passado, enquanto olhava a tabacaria e a menina comendo chocolate —, ela atendeu.

A voz do outro lado dizia que o teste tinha sido confi rmado para daqui a duas horas.

O TESTE TINHA SIDO CONFIRMADO!

Em Cannes!

Afi nal, tinha valido a pena todo o esforço de cruzar o oceano, desembarcar em uma cidade onde todos os hotéis estavam cheios, encontrar-se no aeroporto com outras moças na mesma situação que ela (uma polonesa, duas russas, uma brasileira), saírem batendo em portas até conseguirem um pequeno conjugado a preço exorbitante.

Depois de tantos anos tentando a sorte em Chicago, viajando para Los Angeles de tempos em tempos em busca de mais agentes, mais anúncios, mais rejeições, seu futuro estava na Europa!

Daqui a duas horas?

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Não havia a menor possibilidade de pegar um ônibus porque não conhecia as linhas. Estava hospedada no alto de uma colina, e até agora só tinha descido aquela ladeira íngreme duas vezes — para distribuir seus books e para a festa insignifi cante da noite anterior. Quando chegava lá embaixo, pedia carona a estranhos, geralmente homens solitá-

rios em seus lindos carros conversíveis. Todos sabiam que Cannes era um lugar seguro, e toda mulher sabia que a beleza ajudava muito nesses momentos, mas não podia contar com a sorte, precisava resolver o problema por si mesma. Em um teste de elenco, horário é rigoroso, esta é uma das primeiras coisas que se aprende em qualquer agência de artistas. Além disso, como notara no primeiro dia que o trânsito estava sempre engarrafado, tudo que restava era vestir-se e sair correndo. Em uma hora e meia estaria lá — lembrava-se do hotel onde a produtora estava instalada, porque tinha feito parte da peregrinação que fi zera na tarde anterior, em busca de uma chance.

O problema agora era o mesmo de sempre:

“Que roupa devo usar?”

Atacou com fúria a mala que tinha trazido, escolheu uma calça jeans Armani produzida na China, e comprada em um mercado negro nos subúrbios de Chicago por um quinto do preço. Ninguém ia dizer que era uma falsifi cação, porque não era: todos sabiam que as companhias chinesas enviavam 80% da produção para as lojas originais, enquanto seus empregados se encarregavam de colocar à venda — sem nota fi scal — os 20% restantes. Era, digamos, a sobra do estoque.

Vestiu uma camiseta branca, DKNY, mais cara que a calça; fi el aos seus princípios, sabia que quanto mais discreta, melhor. Nada de saias curtas e decotes ousados — porque se outras pessoas tivessem sido convidadas para o teste, estariam todas vestidas assim.

Hesitou sobre a maquiagem. Escolheu uma base muito discreta, e contornos de lábios mais discretos ainda. Já tinha perdido preciosos quinze minutos.

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11:45 AM

As pessoas nunca estão satisfeitas com nada. Se têm pouco, querem muito. Se têm muito, querem ainda mais. Se têm ainda mais, desejam ser felizes com pouco, mas são incapazes de fazer qualquer esforço nesse sentido.

Será que não entendem que a felicidade é tão simples? O que queria aquela menina que passou correndo, vestida de jeans e blusa branca? O que podia ser tão urgente, que a impedia de contemplar o belo dia de sol, o mar azul, as crianças em seus carrinhos, as palmei-ras na orla da praia?

“Não corra, menina! Você jamais poderá fugir das duas presenças mais importantes na vida de qualquer ser humano: Deus e a morte.

Deus está acompanhando os seus passos, irritado porque vê que não presta atenção no milagre da vida. E a morte? Você acaba de passar por um cadáver, e nem sequer notou.”

Igor caminhou várias vezes pelo local do assassinato. Em um dado momento, concluiu que suas idas e vindas despertariam suspeitas; decidiu então fi car à prudente distância de duzentos metros do local, apoiado na balaustrada que dava para a praia, usando óculos escuros (o que nada tinha de suspeito, não apenas por causa do sol, mas também pelo fato de que óculos escuros, em um lugar de celebridades, são sinônimo de status).

Está surpreso em ver que já é quase meio-dia, e mesmo assim ninguém se deu conta de que há uma pessoa morta na principal avenida de uma cidade que neste período era o centro de atenções do mundo.

Um casal agora se aproxima do banco, visivelmente irritado. Co-meçaram a gritar com a Bela Adormecida; são os pais da moça, que a insultam ao ver que não está trabalhando. O homem a sacode com alguma violência. Em seguida, a mulher debruça-se e cobre o seu campo de visão.

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Igor não tem dúvidas do que acontecerá em seguida.

Gritos femininos. O pai tirando o telefone portátil do bolso, afastando-se um pouco, agitado. A mãe sacudindo a fi lha, o corpo que não dá mostras de reagir. Os transeuntes se aproximam; agora sim, ele pode tirar seus óculos escuros e chegar perto, afi nal de contas é mais um curioso na multidão.

A mãe chora, abraçada à moça. Um jovem a afasta e tenta respira-

ção boca a boca, mas logo desiste — o rosto de Olivia já mostra uma ligeira tonalidade púrpura.

— Ambulância! Ambulância!

Várias pessoas ligam para o mesmo número, todos sentem-se úteis, importantes, dedicados. Já se pode ouvir o som da sirene a distância. A mãe grita cada vez mais alto, uma moça tenta abraçá-la e pedir que se acalme mas ela a empurra. Alguém apóia o cadáver e tenta mantê-lo sentado, outro pede que a deixe deitada no banco, era tarde demais para qualquer providência.

— Com toda certeza, excesso de droga — comenta alguém ao seu lado. — Essa juventude está mesmo perdida.

Os que escutaram o comentário concordam com a cabeça. Igor continua impassível, enquanto assiste à chegada dos paramédicos, os aparelhos sendo retirados do carro, os choques elétricos no coração, um médico mais experiente acompanha tudo aquilo sem dizer nada, pois sabe que não há mais nada a fazer mas não quer que seus subordinados sejam acusados de negligência. Descem a maca, a colocam na ambulância, a mãe se agarra com a fi lha, discutem um pouco com ela mas terminam permitindo que entre, saem em disparada.