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estará liberado - irá começar a procurar um local no dia seguinte. Faço as minhas malas, e ela vai ler um livro. Digo que já está tarde, irei amanhã. Ela sugere que vá imediatamente, porque amanhã eu me sentirei mais fraco, menos decidido.

Pergunto se está querendo se livrar de mim. Ela ri, diz que fui eu quem decidiu acabar com tudo. Vamos dormir, no dia seguinte a vontade de ir embora não é tão grande assim, resolvo que preciso pensar melhor. Esther, porém, diz que o assunto não está terminado: enquanto não arriscar tudo pelo que julgo ser a verdadeira razão de minha vida, dias como este voltarão a acontecer, ela

terminará infeliz, e será sua vez de deixar-me. Só que, neste caso, a intenção se transformará imediatamente em ação, e queimará qualquer ponte que a permita voltar. Pergunto o que quer dizer com isso. Arranjar outro namorado, apaixonar-me, ela responde.

Ela sai para trabalhar no jornal, resolvo tirar um dia de folga (além das letras de música, estou trabalhando em uma gravadora no momento), instalo-me diante da máquina de escrever. Levanto-me, leio os jornais, respondo a cartas importantes, quando estas terminam começo a responder as cartas sem

importância, anoto coisas que preciso fazer, escuto música, dou uma volta no quarteirão, converso com o padeiro, volto para casa, o dia inteiro passou, não consegui datilografar nem mesmo uma simples frase. Concluo que odeio Esther, ela me força a fazer coisas que não estou com vontade.

Quando chega do jornal, não me pergunta nada - afirma que eu não

consegui escrever. Diz que meu olhar de hoje é igual a meu olhar de ontem.

Vou trabalhar no dia seguinte, mas de noite torno a ir para a mesa onde está a máquina. Leio, vejo televisão, escuto música, volto para diante da máquina, e assim se passam dois meses, acumulando páginas e mais páginas de “primeira frase”, sem jamais conseguir terminar o parágrafo.

Dou todas as desculpas possíveis - neste país ninguém lê, ainda não tenho o roteiro imaginado, ou tenho um ótimo roteiro, mas estou procurando a maneira correta de desenvolvê-lo. Além do mais, estou ocupadíssimo com tal artigo ou tal letra de música para ser feita. Outros dois meses, e um dia ela aparece em casa com um bilhete de avião.

“Basta”, diz. “Pare de fingir que está ocupado, que é uma pessoa consciente de suas responsabilidades, que o mundo precisa do que está fazendo, e vá viajar por algum tempo.” Sempre poderei ser o diretor do jornal onde publico algumas reportagens, sempre poderei ser o presidente da companhia de discos para onde faço as letras de música - e onde estou trabalhando apenas porque eles não desejam que eu faça letras para as gravadoras concorrentes. Sempre poderei voltar a fazer o que estou fazendo agora, mas o meu sonho, ele não pode mais esperar. Ou eu o aceito, ou o esqueço.

Para onde é o bilhete?

Espanha.

Quebro alguns copos, os bilhetes custam caro, não posso ausentar-me

agora, tenho uma carreira diante de mim e preciso cuidar dela. Vou perder muitas parcerias de música, o problema não sou eu, o problema é nosso casamento. Se eu quisesse escrever um livro, ninguém me impediria de fazê-lo.

“Você pode, você quer, mas você não faz”, ela diz. “Já que seu problema

não é comigo, e sim com você mesmo, é melhor ficar algum tempo sozinho.”

Mostra-me um mapa. Devo ir até Madri, onde tomarei um ônibus para as

montanhas dos Pireneus, na fronteira com a França. Ali começa uma rota

medieval, o caminho de Santiago: devo fazê-la a pé. No final, ela estará me esperando, e então aceitará tudo o que digo: que não a amo mais, que ainda não vivi o bastante para criar uma obra literária, que não quero nunca mais pensar em ser escritor, que tudo era apenas um sonho de adolescência, nada mais.

É uma alucinação! A mulher com quem estou há dois longos anos -

verdadeira eternidade em uma relação amorosa -decide minha vida, me faz largar meu trabalho, quer que eu cruze a pé um país inteiro! É tão delirante que resolvo levar a sério. Embriago-me por várias noites, com ela ao meu lado também se embriagando - embora deteste bebida. Fico agressivo, digo que tem inveja de minha independência, que esta idéia maluca nasceu apenas porque disse que queria deixá-la. Ela responde que tudo nasceu quando eu ainda estava no colégio, e sonhava em ser escritor - agora chega de adiar, ou me enfrento comigo, ou passarei o resto da vida me casando, me divorciando, contando lindas histórias sobre meu passado e decaindo cada vez mais.

Evidente que não posso admitir que tenha razão - mas sei que está falando a verdade. E quanto mais me dou conta disso, mais agressivo fico. Ela aceita as agressões sem reclamar - apenas lembra que a data da viagem está chegando.

Certa noite, já perto do dia marcado, ela se recusa a fazer amor. Fumo um cigarro inteiro de haxixe, bebo duas garrafas de vinho e desmaio no meio da sala.

Quando acordo, me dou conta que cheguei ao fundo do poço, e agora só me resta voltar à superfície. Logo eu, que me orgulho tanto de minha coragem, agora vejo o quanto estou sendo covarde, acomodado, mesquinho com minha própria vida.

Naquela manhã, eu a desperto com um beijo e digo que farei o que sugere.

Viajo, e durante 38 dias percorro a pé o caminho de Santiago. Ao chegar a Compostela, entendo que minha verdadeira jornada começa ali. Decido morar em Madri, viver dos meus direitos autorais, deixar que um oceano me separe do corpo de Esther -embora continuemos oficialmente juntos, nos falando ao

telefone com certa freqüência. É muito confortável continuar casado, sabendo que sempre posso retornar para os braços dela, ao mesmo tempo desfrutando de toda a independência do mundo.

Apaixono-me por uma cientista catalã, por uma argentina que faz jóias, por uma menina que canta no metro. Os direitos autorais de música continuam

entrando, e são o bastante para que eu possa viver confortavelmente, sem precisar trabalhar, com tempo livre para tudo, inclusive... escrever um livro.

O livro sempre pode esperar o dia seguinte, porque o prefeito de Madri

decidiu que a cidade devia ser uma festa, criou um slogan interessante (“Madri, me mata”), estimula a visita de vários bares na mesma noite, inventa o romântico nome de “movida madrilena”, e isso eu não posso deixar para amanhã, tudo é muito divertido, os dias são curtos, as noites são longas.

Um belo dia, Esther telefona e diz que virá me visitar: segundo ela,

precisamos resolver de uma vez por todas nossa situação. Marca sua passagem para uma semana depois, e assim me dá tempo para organizar uma série de

desculpas (estou indo para Portugal, mas volto em um mês - digo para a menina loura que antes cantava no metro, que agora dorme no apart-hotel, e sai todas as noites comigo para a movida madrilena). Arrumo o apartamento, apago qualquer indício de presença feminina, peço aos meus amigos um silêncio completo,

minha mulher está chegando para passar um mês.

Esther desce do avião com um irreconhecível e horrível corte de cabelo.

Viajamos para o interior da Espanha, conhecemos cidadezinhas que significam muito por uma noite, e que, se tivesse que voltar hoje, já não saberia onde se encontram. Assistimos a corridas de touros, danças flamengas, eu sou o melhor marido do mundo, porque quero que ela volte com a impressão de que ainda a amo. Não sei por que desejo dar esta impressão, talvez porque no fundo acredite que o sonho de Madri irá acabar um dia.

Reclamo de seu corte de cabelo, ela muda, fica linda de novo. Agora faltam apenas 10 dias para que suas férias terminem, quero que ela vá embora contente, e me deixe de novo sozinho com Madri que me mata, discotecas que abrem às 10

da manhã, touros, conversas intermináveis sobre os mesmos assuntos, álcool, mulheres, mais touros, mais álcool, mais mulheres, e nenhum, absolutamente nenhum horário.

Um domingo, caminhando até uma lanchonete que fica aberta a noite