Na antevéspera de Natal, Astorre foi à festa que Nicole dava no seu apartamento e para a qual convidara alguns colegas de profissão e membros dos seus grupos de direitos civis, incluindo o que estimava acima de todos, a Campanha Contra a Pena de Morte.
Astorre gostava de festas. Adorava conversar com pessoas que talvez nunca mais voltasse a ver e que eram tão diferentes dele. Por vezes, conhecia mulheres interessantes com as quais mantinha breves ligações. E estava sempre na esperança de apaixonar-se; tinha saudades da sensação. Nessa noite, Nicole recordou-lhe o seu romance de adolescentes, não de uma forma coquete ou insinuante, mas com bom humor.
― Destroçaste-me o coração quando obedeceste ao meu pai e foste para a Sicília ― disse.
― Aposto que sim ― respondeu ele. v O que não te impediu de namorar com outros rapazes.
Fosse pelo que fosse, Nicole mostrou-se particularmente amigável durante a festa. Deu-lhe a mão, como uma colegial apaixonada, beijou-o nos lábios e agarrou-se a ele como se soubesse que estava prestes a escapar-se-lhe mais uma vez.
Isto confundiu-o, porque sentiu renascer em si toda a antiga ternura mas compreendia que recomeçar com Nicole seria um erro tremendo naquela altura da sua vida. Não seria justo para qualquer dos dois, não com as decisões que tinha de tomar. Finalmente, ela levou-o até junto de um grupo de pessoas e apresentou-o.
Havia um conjunto musical, e Nicole pediu-lhe que cantasse, um pedido que ele estava sempre disposto a satisfazer. Cantaram juntos uma antiga balada de amor italiana.
Enquanto cantavam, ela agarrou-se-lhe ao braço e olhou-o nos olhos como se lhe procurasse alguma coisa na alma. Depois, com um último beijo deixou-o.
Mais tarde, fez-lhe uma surpresa. Levou-o até junto de uma das convidadas, uma mulher cheia de uma beleza tranqüila, com uns grandes olhos cinzentos e inteligentes.
― Astorre ― disse ―, apresento-te Georgette Cilke, presidente da Campanha Contra a Pena de Morte. Trabalhamos muitas vezes juntas.
Georgette apertou-lhe a mão e elogiou-lhe a voz.
― Faz-me lembrar o jovem Sinatra ― disse.
Astorre ficou deliciado.
― Obrigado. É o meu herói. Sei de cor todas as canções dele.
― O meu marido é também um grande fã ― continuou Georgette. Gosto da música dele, mas não da maneira como trata as pessoas.
Astorre suspirou, sabendo que ia entrar numa discussão que não podia ganhar, mas que teria de travar de qualquer modo, como soldado fiel à causa.
― Sim, mas temos de saber distinguir o artista do homem.
Georgette achou graça à elegância da defesa.
― Teremos? ― perguntou, com um brilho divertido nos olhos. ― Penso que nunca devemos pactuar com esse tipo de insensibilidade e comportamento grosseiro, para não falar da violência.
Astorre percebeu que ela não ia desistir facilmente, por isso limitou-se a cantar alguns compassos de uma das mais famosas canções de amor de Sinatra. Olhou-a nos olhos enquanto cantava, e viu que começava a sorrir.
― OK, OK. Admito que a música é boa, mas nem mesmo assim estou disposta a deixá-lo safar-se com tanta facilidade ― disse ela, e tocou-lhe levemente no ombro antes de afastar-se.
Astorre passou o resto da festa a observá-la. Era uma mulher que nada fazia para realçar a sua beleza, mas que tinha uma graça natural e uma doçura que eliminavam completamente a parte de ameaça que a beleza inevitavelmente contém. E Astorre, como todos os presentes, enamorou-se um pouco dela. Georgette, no entanto, parecia genuinamente inconsciente do efeito que causava nas pessoas. Não havia nela um grama que fosse de coqueteria.
Astorre já tinha, claro, lido as notas de Marcantonio sobre Cilke, um implacável perseguidor das fraquezas humanas, friamente eficiente no seu trabalho. E também sabia que a mulher o amava verdadeiramente. O que era um mistério.
A meio da festa, Nicole aproximou-se dele e sussurrou-lhe que Aldo Monza o esperava no vestíbulo.
― Lamento, Nicole ― disse ele. ― Tenho de ir.
― OK. ― respondeu Nicole. ― Estava na esperança que ficasses a conhecer um pouco melhor a Georgette. É pura e simplesmente a mulher mais inteligente que alguma vez conheci.
― Bem, é muito bonita ― reconheceu Astorre, e pensou para si mesmo como continuava a ser um tolo em matéria de mulheres. já estava a construir fantasias com base num único encontro.
No vestíbulo, encontrou Aldo Monza desconfortavelmente sentado numa das frágeis mas belas cadeiras antigas de Nicole. Monza pôs-se de pé e disse, num murmúrio:
― Temos os gêmeos. Estão às suas ordens.
Astorre sentiu um aperto no coração. Agora, ia começar. Ia ser novamente testado.
― Quanto tempo levaremos a chegar lá? ―- perguntou.
― Pelo menos três horas. Temos um nevão.
Astorre consultou o relógio. Eram dez e meia.
― É melhor irmos ― disse.
.Quando saíram do edifício, o ar estava branco de neve, e os carros estacionados já enterrados quase até meia altura. Monza tinha um grande Buick à espera.
Conduziu ele, com Astorre ao lado. Estava muito frio, e Monza ligou o aquecimento. Gradualmente, o carro foi-se transformando num forno que cheirava a tabaco e a vinho.
― Durma ― disse Monza. ― Temos uma longa viagem pela frente e uma noite de trabalho.
Astorre deixou o corpo descontrair-se e o espírito deslizar para o reino dos sonhos. A neve quase escondia a estrada. Recordou o calor ardente da Sicília e os onze anos durante os quais o Dom o preparara para a sua tarefa. Sabia agora quão inescapável era a sua sorte.
Astorre Viola tinha dezesseis anos quando Don Aprile o mandou estudar para Londres. Não ficou surpreendido. O Don enviara todos os seus filhos para colégios particulares e praticamente deixara-os crescer nas universidades; não só por acreditar nas vantagens de uma boa educação, mas também para mantê-los afastados dos seus negócios e do seu modo de vida.
Em Londres, Astorre ficou em casa de um próspero casal que emigrara muitos anos antes da Sicília e parecia ter encontrado uma vida confortável em Inglaterra. Eram ambos de meia-idade, sem filhos, e tinham mudado o nome de Priola para Pryor. Todo o seu aspecto era extremamente britânico
Com as suas feições branqueadas pelo clima inglês, e os seu modos e gestos muito serenos, nada sicilianos. O Sr. Pryor ia para o trabalho de chapéu de coco e levando no braço um guarda-chuva meticulosamente enrolado; a Sra. Pryor usava os vestidos às flores e os ridículos chapéus das matronas inglesas.
Na intimidade do lar, porém, revertiam às origens. O Sr. Pryor usava calças largas aos quadrados e camisas pretas sem colarinho, enquanto a Sra. Pryor mudava para vestidos pretos compridos e soltos e cozinhava ao velho estilo italiano. Ele chamava-lhe Marizza, ela chamava-lhe Zu.
O Sr. Pryor trabalhava como diretor executivo na filial de um grande banco de Palermo. Tratava Astorre como um sobrinho preferido, mas mantinha as suas distâncias. A Sra. Pryor enchia-o de comida e de carinho, como se ele fosse um neto.
O Sr. Pryor deu-lhe um carro e uma generosa mesada. Entretanto, inscrevera-o numa pequena e obscura universidade dos arredores de Londres especializada em gestão bancária, mas que também tinha uma boa reputação na área das artes. Astorre cumpria o curriculum exigido, mas o seu verdadeiro interesse estava nas aulas de representação e canto. Preencheu o horário com disciplinas opcionais de Música e História. Foi durante a sua estada em Londres que se apaixonou pelo aparato da caça à raposa ― não a morte nem a caçada propriamente dita, só o aparato: os casacos vermelhos, os cães castanhos, os cavalos negros.