― É ― respondeu Craxxi. ― Nesse caso vais ter de ser extra-cuidadoso. Especialmente com o Heskow.
― Astorre ― interveio o sr. Pryor, friamente ―, o teu objetivo primário é salvar os bancos e proteger os filhos de Don Aprile. A vingança é um objetivo menor que pode ser abandonado.
― Não sei ― respondeu Astorre, sem se comprometer. ― Preciso de pensar nisso. ― Dirigiu-lhes um largo sorriso. ― Veremos o que acontece.
Nenhum dos dois acreditou nele por um instante que fosse. Ao longo das suas vidas, tinham conhecido muitos jovens como Astorre. Viam-nos como revivescências dos grandes chefes da Máfia de outros tempos, homens como eles próprios não tinham podido ser por lhes faltar um certo carisma e uma certa vontade que só os grandes possuíam: os homens de respeito que dominavam províncias inteiras, desafiavam as regras do Estado e saíam vencedores. Reconheciam em Astorre essa vontade, esse dom, essa obstinação de que ele próprio não tinha consciência. Até as suas loucuras, as suas cantigas, os seus cavalos, eram fraquezas que não lhe afetavam o destino. Simples alegrias da juventude que revelavam o seu bom coração.
Astorre falou-lhes da oferta de compra sobre os bancos feita por Marriano Rubio e Inzio Tuilippa. De Cilke ter tentado servir-se dele para apanhar Timmona Portella. Os dois homens escutaram-no atentamente.
― Da próxima vez, manda-os ter comigo ― pediu o sr. Pryor. ― Segundo as minhas informações, Rubio é o diretor financeiro do tráfico mundial de droga.
― Não venderei ― declarou Astorre. ― O Don deu-me instruções estritas.
― Claro que não ― concordou Craxxi. ― São o futuro e podem ser a tua proteção. ― fez uma curta pausa, e então continuou : ― Deixa-me contar-te uma pequena história. Antes de retirar-me, tinha um sócio, um homem muito honesto, um pilar da sociedade. Certa vez, convidou-me para almoçar no edifício da sua empresa, numa sala de jantar privada. Depois, levou-me a ver as salas enormes onde, num milhar de cubículos, um milhar de jovens, rapazes e raparigas, trabalhavam com computadores.
― Disse-me: “Essa sala dá-me um bilhão de dólares por ano. Há quase trezentos milhões de pessoas neste país, e nós dedicamo-nos a fazê-las comprar os nossos produtos. Planeamos sorteios especiais, prêmios e bônus, fazemos promessas extravagantes, tudo legalmente definido, para levá-las a gastar o seu dinheiro nas nossas empresas. E sabes o que é que é crucial? Precisamos de bancos que dêem a esses trezentos milhões de pessoas crédito para gastarem o dinheiro que não têm.” O importante são os bancos. Tens de ter bancos do teu lado.
― É verdade ― corroborou o sr. Pryor. ― E ambas as partes lucram. Embora as taxas de juro sejam altas, essas dívidas incitam as pessoas, fazem-nas produzir mais.
Astorre riu-se.
― Fico contente por saber que conservar os bancos é tão boa idéia. Seja como for, não importa. O Don disse-me para não vender. Para mim basta. Terem-no matado é que importa.
― Não podes fazer seja o que for contra esse tal Cilke ― disse-lhe Craxxi, firmemente. ― O governo é demasiado forte para que se possa atacá-lo dessa maneira. Mas admito que o homem representa um perigo. Tens de ser esperto.
― O teu próximo passo é o Heskow ― disse o sr. Pryor. ― É crucial. Mas, mais uma vez, vais ter de ser muito cuidadoso. Lembra-te, podes pedir ajuda a Don Craxxi, e eu próprio tenho alguns recursos. Não estamos totalmente afastados. E temos interesses nos bancos... sem falar na nossa amizade por Don Aprile, Deus tenha a sua alma.
― OK. ― respondeu Astorre. ― Depois de falar com o Heskow, voltamos a encontrar-nos.
Astorre tinha plena consciência de quanto a sua situação era perigosa. Sabia que os seus êxitos eram pequenos, apesar de ter castigado os assassinos. Os irmãos Sturzo não passavam de um fio tirado à meada do mistério do assassínio de Don Aprile. Mas confiava na infalível paranóia que lhe fora incutida durante os seus anos de treino nas intermináveis traições da vida siciliana. Tinha agora de ser particularmente cuidadoso. Heskow parecia um alvo fácil, mas também podia estar armadilhado.
Havia algo que o surpreendia. Julgara-se feliz na sua vida de pequeno homem de negócios e cançonetista amador, mas agora experimentava uma euforia que nunca antes conhecera. A sensação de estar de volta ao mundo a que pertencia. E de que tinha uma missão. Proteger os filhos de Don Aprile, vingar a morte do homem que amara. Tinha simplesmente de quebrar a vontade do inimigo.
Aldo Monza chamara dez bons homens da sua aldeia natal na Sicília. Seguindo instruções suas, assegurara definitivamente a subsistência das respectivas famílias, fosse o que fosse que lhes acontecesse a eles.
“Não contes com a gratidão das pessoas pelas coisas que lhes fizeste no passado”, dissera-lhe certa vez o Don. “Deves torná-las gratas pelas coisas que lhes farás no futuro.” Os bancos eram o futuro da família Aprile, de Astorre e do seu crescente exército de homens. Era um futuro pelo qual valia a pena lutar, custasse o que custasse.
Don Craxxi fornecera-lhe outros seis homens de absoluta confiança. E Astorre transformara a sua casa numa fortaleza, com estes homens e os mais modernos equipamentos de detecção. Preparou, além disso, um esconderijo para onde poderia desaparecer se as autoridades resolvessem deitar-lhe a mão, por qualquer motivo.
Nunca se fazia acompanhar por guarda-costas. Em vez disso, contava com a sua própria rapidez de reação e usava os guardas como batedores nos itinerários que ia seguir.
Deixaria o caso Heskow no gelo durante algum tempo. Estranhava a reputação de honradez de que Cilke gozava, uma reputação que até o próprio Don confirmara.
“Há homens honrados que passam uma vida inteira a prepararem-se para um supremo ato de traição”, dissera-lhe o sr. Pryor. Mas apesar de tudo isto, Astorre sentia-se confiante. Tudo o que tinha de fazer era manter-se vivo enquanto as peças do quebra-cabeças se encaixavam umas nas outras.
O verdadeiro teste viria de homens como Heskow, Portella, Tulippa e Cilke. Teria, uma vez mais, de manchar pessoalmente as mãos de sangue.
Astorre demorou um mês a decidir exatamente como lidar com John Heskow. O homem representava um desafio complicado. Matá-lo seria extremamente fácil, extrair-lhe informações extremamente difícil. Usar o filho como alavanca era perigoso ― forçá-lo-ia a conspirar enquanto fingia cooperar. Resolveu não lhe dizer que os irmãos Sturzzo tinham confessado que fôra ele o condutor. Não queria assustá-lo demasiado.
Entretanto, foi reunindo a indispensável informação sobre os hábitos diários de Heskow. Parecia tratar-se de um homem moderado, cuja principal paixão era cultivar flores e vendê-las a grossistas e até numa pequena banca à beira da estrada, em Hamptons. O seu único vício era assistir aos jogos do filho, pelo que acompanhava religiosamente todo o calendário da equipe de basquete de Villanova.
Numa certa noite de sábado, em Janeiro, Heskow preparava-se para ir assistir ao jogo Villanova-Temple no Madison Square Garden, em Nova Iorque. Antes de sair de casa, ligou o seu sofisticado sistema de alarme. Era sempre meticuloso nos pequenos pormenores da vida quotidiana, estava sempre seguro de ter tomado as medidas necessárias para fazer face a qualquer possível acidente. Era essa confiança que Astorre queria destruir logo no início da sua entrevista.
John Heskow foi de carro até à cidade e jantou sozinho num restaurante chinês perto do Garden. Optava sempre por comida chinesa quando jantava fora, porque era a única que não conseguia cozinhar melhor em casa. Gostava das tampas prateadas que cobriam cada prato, como se escondessem alguma deliciosa surpresa. Gostava dos chineses. Não se metiam na vida dos outros, não se punham a tagarelar nem se mostravam obsequiosamente familiares. E nunca, nunca, detectara um engano na conta, que verificava sempre com o maior cuidado, pois encomendava geralmente vários pratos.