Pouco depois, a campainha da porta do hall de entrada tocou e Aspinella desceu as escadas a correr e saiu. Nunca usava o elevador. Paul Di Benedetto esperava-a num Chevrolet sem qualquer identificação. Aspinella instalou-se a seu lado e colocou o cinto de segurança. O chefe do Departamento Criminal era um péssimo condutor noturno.
Di Benedetto fumava um enorme charuto, de modo que Aspinella baixou o vidro da sua janela.
― É cerca de uma hora de viagem ― disse ele. ― Temos de pensar bem nesta coisa.
Sabia que era um grande passo para ambos. Uma coisa era aceitar subornos e dinheiro da droga; outra muito diferente era levar a cabo uma execução.
― O que é que há para pensar? ― perguntou Aspinella. ― Recebemos meio milhão por liquidar um gajo que devia estar no corredor da morte. Sabes o que posso fazer com duzentos e cinqüenta mil dólares?
― Não ― respondeu Di Benedetto. ― Mas sei o que eu posso fazer. Comprar um super-condomínio em Miami e reformar-me. Lembra-te, vamos ter de viver com isto.
― Receber dinheiro da droga já é pisar muito para lá da linha ― replicou Aspinella. ― Que se lixe essa merda.
― Tens razão ― respondeu Di Benedetto. ― Vamos ver é se esse tal Heskow traz a massa esta noite ou se está a enrolar-nos.
― Até agora, tem sido sempre de confiança. É o meu Pai Natal. E se não trouxer um grande saco para nós, vai ser um Pai Natal morto
Di Benedetto riu-se.
― É assim mesmo. Sabes por onde anda esse tal Astorre, para podermos despachá-lo rapidamente?
― Claro. Tenho-o sob vigilância. Até já escolhi o melhor lugar para lhe deitar a mão... O armazém de macaroni. O tipo trabalha quase sempre até tarde.
― Trouxeste a arma extra para lhe plantar?
― O que é que te parece? Nem o mais estúpido dos pés-chatos anda na rua sem uma delas.
Continuaram em silêncio durante cerca de dez minutos. Então Di Benedetto perguntou, numa voz deliberadamente calma e despida de emoção: ― Qual dos dois vai disparar?
Aspinella lançou-lhe um olhar divertido.
― Paul, passaste os últimos dez anos atrás de uma secretária. Tens visto mais molho de tomate do que sangue. Eu disparo. ― Viu o alivio espelhar-se no rosto dele e resmungou: Homens... são uma porra de uns inúteis.
Ficaram novamente silenciosos, perdidos em pensamentos a respeito do que os tinha feito chegar àquele momento das suas vidas. Di Benedetto entrara para a Polícia muito novo, havia mais de trinta anos. A sua corrupção fora gradual, mas inevitável. Começara com ilusões de grandeza ― seria respeitado e admirado por arriscar a vida para proteger os outros, Mas os anos tinham-no ensinado. Primeiro, foram os pequenos subornos dos vendedores de rua e das lojecas de bairro. Depois, um testemunho falso para safar um tipo de uma acusação de roubo. Daí a aceitar dinheiro dos grandalhões da droga parecera um pequeno passo. Finalmente, aparecera Heskow, que, como ficara esclarecido logo desde o início, agia em nome de Timmona Portella, o maior chefe da Máfia de Nova Iorque.
Claro que havia sempre uma boa desculpa. A mente consegue vender a si mesma tudo o que quiser. Via os oficiais superiores da Polícia a enriquecerem com o dinheiro da droga, e os dos escalões inferiores eram ainda mais corruptos. E ele, não tinha três filhos para mandar para a universidade? Mas sobretudo, era a ingratidão das pessoas que protegia. Os grupos de Direitos Civis que se punham a berrar contra a brutalidade policial se um tipo dava um estalo num sacana de um preto que andava nas ruas a assaltar pessoas. Os meios de comunicação que despejavam merda em cima da Polícia à mais pequena oportunidade. Cidadãos a processarem policias. Polícias que eram postos na rua depois de anos e anos de serviço, privados das suas reformas, chegando até a ir para a prisão. Ele próprio fora uma vez repreendido por causa de uma acusação de tratar mal os criminosos negros, quando sabia perfeitamente que não tinha preconceitos racistas. Ou se calhar era por culpa dele que os criminosos de Nova Iorque eram majoritariamente negros? O que é que um tipo era suposto fazer? Dar-lhes licença para roubar, como forma de ação afirmativa.? Fartara-se de promover polícias negros. Fora o protetor de Aspinella no Departamento, dando-lhe a promoção que ela merecia por aterrorizar os mesmíssimos criminosos negros. E a ela não podiam acusá-la de racismo. Em resumo, a sociedade cagava nos polícias que a protegiam. A menos, claro, que fossem mortos no cumprimento do dever. Então lá vinham com a trampa do costume. A verdade verdadeira? Não compensava ser um polícia honesto. E no entanto... no entanto, nunca pensara que chegaria ao assassínio. Mas, ao fim e ao cabo, era invulnerável; não havia qualquer risco, e havia uma grande porção de dinheiro, e a vítima era um assassino. No entanto...
Também Aspinella perguntava a si mesma como fora que a sua vida chegara àquele ponto. Deus sabia que sempre combatera o crime com uma paixão e uma implacabilidade que tinham feito dela uma lenda em Nova Iorque. Claro que aceitara alguns subornos, coisa pouca. Entrara tarde no jogo, quando Di Benedetto a convencera a receber dinheiro da droga. Fora o seu protetor durante anos, e seu amante durante alguns meses ― nem mau nem bom, apenas um urso desastrado que usava o sexo como parte do impulso para hibernar.
A sua corrupção a sério começara logo no primeiro dia depois de ter sido promovida a detetive. Na sala de recreio da esquadra, um corpulento polícia branco chamado Gangee começara a entrar com ela, em ar de brincadeira.
― Eh, Aspinella ― dissera ―, com a tua rata e os meus músculos, vamos acabar com o crime no mundo civilizado.
Os outros polícias, incluindo alguns negros, riram-se. Aspinella olhara para ele friamente e respondera:
― Nunca serás meu parceiro. Um homem que insulta uma mulher não passa de um cobarde de pila curta.
Gangee tentara manter a coisa numa base amigável.
― A minha pila curta chega para tapar a tua rata sempre que quiseres experimentar. De qualquer maneira, já andava a pensar em mudar de prato.
Aspinella voltara para ele um rosto gelado.
― Antes preto que cobarde. Vai esgalhar uma, cretino de merda.
A sala ficara paralisada de surpresa. Gangee corara violentamente. Um desprezo tão virulento não podia passar sem luta. Começara a avançar para ela, e os outros afastaram-se da sua frente.
Aspinella estava preparada para sair. Empunhara a arma, sem a apontar. ― Experimenta, e estouro-te os tomates ― dissera, e naquela sala ninguém tivera a mínima dúvida de que puxaria o gatilho. Gangee parara e abanara a cabeça, com nojo.
O incidente fora denunciado, evidentemente. Era uma infração grave por parte de Aspinella. Mas Di Benedetto era suficientemente esperto para saber que um julgamento interno seria um desastre político para o Departamento de Polícia de Nova Iorque. Abafara a coisa e ficara tão impressionado com Aspinella que a chamara para junto de si e se tornara seu mentor.
O que afetara Aspinella mais do que qualquer outra coisa fôra o fato de haver pelo menos quatro polícias negros naquela sala e nenhum deles ter tentado defendê-la. Pelo contrário, tinham-se rido das graçolas do polícia branco. A lealdade sexual era mais forte do que a lealdade racial.
A partir daí, a sua carreira estabelecera-a como o melhor elemento da divisão. Era implacável para com os traficantes de droga, os gatunos, os assaltantes à mão-armada. Não lhes dava quartel nem mostrava piedade, fossem pretos ou brancos. Feria-os a tiro, espancava-os, humilhava-os. Várias vezes foram apresentadas queixas, mas nenhuma pudera ser provada, e a sua reputação de coragem falava por ela. Mas aquelas queixas despertavam nela uma raiva enorme contra a própria sociedade. Como se atreviam a pô-la em causa quando os protegia contra a pior escumalha da cidade? Di Benedetto apoiava-a contra tudo e contra todos.