Houvera uma situação delicada, quando abatera a tiro dois adolescentes que tinham tentado assaltá-la em plena luz do dia quando saía do seu apartamento, no Harlem. Um dos rapazes dera-lhe um murro na cara e o outro puxara-lhe pela bolsa. Aspinella sacara da arma e os dois rapazes ficaram petrificados. Muito deliberadamente, Aspinella matara-os a ambos. Não só por causa do murro na cara, mas também para deixar clara a mensagem de que não permitia assaltos no seu bairro. Os grupos de Direitos Civis tinham organizado um protesto, mas o Departamento decidira que se tratara de um caso de uso justificado de força. Ela, porém, sabia que era culpada.
Fora Di Benedetto que a convencera a aceitar o seu primeiro grande suborno num caso de droga. Falara-lhe com a afabilidade de um velho tio.
― Aspinella ― dissera ―, hoje em dia um polícia já nem se preocupa muito com as balas. São ossos do oficio. Com o que tem de preocupar-se a sério é com os grupos de Direitos Civis, os cidadãos e os criminosos que o processam por abuso de autoridade. Com os chefões políticos do Departamento que o mandam para a prisão para conseguirem votos. Especialmente alguém como tu. És uma vítima natural, de modo que diz-me, vais acabar como essas desgraçadas que andam por aí a ser violadas, roubadas e assassinadas? Ou vais proteger-te? Entra nesta. Terás mais proteção dos grandalhões do Departamento que já foram comprados. Dentro de cinco ou seis anos, podes reformar-te com um monte dele. E não terás de preocupar-te com ir parar à cadeia por teres despenteado um sacana de um gatuno qualquer.
Cedera.
E, pouco a pouco, começara a achar graça a esconder o dinheiro em contas bancárias secretas. Mas nem por isso dera tréguas aos criminosos. Aquilo era diferente, porém. Aquilo era uma conspiração para cometer assassínio, e tudo bem, o tal Astorre era um tipo da Máfia, e até ia ser um prazer arrumá-lo. De certa maneira, estaria a fazer o seu trabalho. Mas o argumento final fôra o risco ser tão pequeno e a recompensa tão grande. Um quarto de milhão.
Di Benedetto saiu da Southem State Parkway e minutos depois entrava no parque de estacionamento de um pequeno centro comercial com dois pisos. Todas as doze lojas que o constituíam estavam fechadas, incluindo a pizzaria, que ostentava um refulgente anúncio de néon na montra. Saíram do carro.
― É a primeira vez que vejo uma pizzaria fechar tão cedo ― comentou Di Benedetto. Eram apenas dez horas.
Caminhou à frente dela até à porta lateral da pizzaria. Não estava fechada. Subiram uma dúzia de degraus até um corredor. Havia uma suíte com dois quartos do lado esquerdo e um quarto do lado direito. Fez um gesto, e Aspinella verificou a suíte do lado esquerdo enquanto ele ficava de guarda. Depois entraram no quarto da direita. Heskow estava lá, à espera deles. Estava sentado na extremidade de uma comprida mesa de madeira, rodeada por quatro desconjuntadas cadeiras também de madeira. Em cima da mesa havia um saco de lona, relativamente pequeno, que parecia bem recheado. Heskow apertou a mão a Di Benedetto e dirigiu um aceno de cabeça a Aspinella. Ela pensou que nunca tinha visto um branco que parecesse tão branco. O rosto, e até o pescoço, estavam completamente lívidos. O quarto era iluminado por uma lâmpada de fraca potência e não tinha janelas. Sentaram-se à volta da mesa. Di Benedetto estendeu o braço e deu uma palmadinha no saco.
― Está tudo aí? ― perguntou.
― Claro ― respondeu Heskow, com voz trêmula.
Bem, um homem que transportava meio milhão de dólares num saco de lona tinha o direito de estar um pouco nervoso, pensou Aspinella. Mas mesmo assim inspecionou o quarto, em busca de microfones.
― Deixa-me dar uma espreitadela ― disse Di Benedetto.
Heskow desapertou o cordão que fechava a boca do saco e inclinou-o. Cerca de vinte maços de notas presas com elásticos deslizaram para cima da mesa. A maior parte era de notas de cem dólares, nenhum de cinqüenta, e dois eram de vinte.
Di Benedetto suspirou.
― A merda dos vintes ― murmurou. ― OK., volta a metê-los lá dentro.
Heskow guardou os maços dentro do saco e re-apertou o cordão.
― O meu cliente deseja que o assunto seja tratado o mais rapidamente possível ― disse.
― Dentro de duas semanas ― anunciou Di Benedetto.
― Ótimo ― disse Heskow.
Aspinella pegou no saco e pô-lo ao ombro. Não era muito pesado, pensou. Meio milhão não pesava assim tanto.
Viu Di Benedetto apertar a mão a Heskow e sentiu uma onda de impaciência. Queria sair dali para fora. Começou a descer a escadas, com o saco equilibrado no ombro, seguro com uma mão, enquanto a outra se mantinha pronta para sacar a arma. Ouviu os passos de Di Benedetto atrás dela. Estavam cá fora, sentindo o fresco da noite. Ambos escorriam suor. ― Mete o saco no porta-bagagens ― disse Di Benedetto. Sentou-se ao volante e acendeu um charuto. Aspinella deu a volta e entrou no carro. ― Onde é que fazemos a partilha? ― perguntou Di Benedetto.
― Em minha casa não ― respondeu Aspinella. ― Tenho uma babá em casa.
― Na minha também não ― disse Di Benedetto. ― Tenho uma mulher. Que tal alugarmos um quarto num motel?
Aspinella fez uma careta e Di Benedetto propôs, sorrindo:
― O meu gabinete. Trancamos a porta. ― Riram-se ambos. ― Verifica outra vez o porta-bagagens. Certifica-te de que está bem fechado. Aspinella não discutiu. Saiu do carro, abriu o porta-bagagens e pegou no saco. Nesse momento, Di Benedetto ligou a ignição.
A explosão fez chover pedaços de vidro sobre o pequeno edifício. O próprio carro pareceu flutuar no ar por uns instante antes de voltar a cair com um grito de metal rasgado que destruiu o corpo de Di Benedetto. Aspinella Washington foi projetada a quase três metros de distância, com um braço e uma perna partidos. Mas foi a dor do olho arrancado que a fez perder os sentidos.
Heskow, que saía pela porta das traseiras da pizzaria, sentiu a pressão do ar empurrá-lo contra a parede. Saltou para o carro e vinte minutos mais tarde estava em casa, em Brightwaters. Preparou uma bebida rápida e verificou os dois maços de notas de cem que tirara do saco de lona. Quarenta miclass="underline" um bônus bem simpático. Ia dar ao filho dois mil dólares, para gastar à vontade. Não, mil. O resto era para guardar.
Ficou à espera do noticiário da noite na TV, em que a explosão foi a história de abertura. Um polícia morto, outro gravemente ferido. E, no local, um saco de lona com uma grande quantia em dinheiro. O jornalista da Tv não disse quanto.
Quando Aspinella Washington voltou a si no hospital, dois dias mais tarde, não ficou surpreendida ao ser apertadamente interrogada a respeito do dinheiro e por que razão faltavam exatamente quarenta mil dólares para meio milhão. Negou ter qualquer conhecimento do dinheiro. Perguntaram-lhe o que estavam o chefe do Departamento Criminal e a sua adjunta a fazer juntos. Recusou-se a responder alegando tratar-se de um assunto pessoal. Mas ficou furiosa por estarem a interrogá-la tão insistentemente quando ela se encontrava num estado tão evidentemente grave. O Departamento estava-se nas tintas para ela. Queriam lá saber de tudo o que tinha feito. Mas no fim, acabou bem. Não foram feitas acusações e arranjaram as coisas de modo que a investigação a respeito do dinheiro desse em nada.